A guinada política na América do Sul e o impasse brasileiro
Como antecipamos neste espaço no mês passado, José Antonio Kast saiu vencedor no segundo turno das eleições presidenciais no Chile com uma margem confortável — 58,2% dos votos, contra 41,8% da candidata de esquerda — e assumirá a Presidência após derrotar o bloco governista.
O resultado foi amplo e homogêneo, com Kast liderando em todas as regiões do país, um sinal inequívoco do desgaste do governo de Gabriel Boric, associado à desaceleração da atividade econômica, ao aumento da percepção de insegurança e à frustração crescente da população com a condução da política migratória.
Em sua terceira tentativa de chegar ao Palácio de La Moneda, Kast conseguiu captar e organizar esse sentimento difuso de insatisfação ao apresentar uma plataforma fortemente ancorada no combate ao crime, no endurecimento das políticas de segurança pública e em maior controle das fronteiras, além de posições conservadoras em temas sociais.
Ao longo da campanha, embora tenha sido alvo de críticas por declarações passadas mais duras, o candidato ajustou o discurso, buscou ampliar sua penetração junto ao eleitorado moderado e celebrou a vitória como um mandato claro para restaurar ordem, previsibilidade e confiança institucional no país.
Não por acaso, ganha força a interpretação de que o Chile de 2025 antecipa, em diversos aspectos, o Brasil de 2026, especialmente pelo fato de a segurança pública ter se consolidado como o eixo central da decisão eleitoral — ponto que temos destacado de forma recorrente neste espaço.
O caso chileno ilustra como temas como criminalidade, imigração e sensação de perda de controle estatal tendem a sobrepor discussões tradicionais de política econômica no momento do voto.
Reconfiguração política na América Latina
O resultado também se insere em um movimento mais amplo de reconfiguração política na América Latina, já observado em países como Argentina, Bolívia e Equador, marcado pelo avanço de lideranças à direita ou de perfil mais pró-mercado.
A vitória de Kast foi rapidamente celebrada por figuras como Javier Milei, reforçando a leitura de que há uma mudança relevante no humor político regional.
À frente, contudo, o novo presidente terá de lidar com um Congresso fragmentado, o que deve impor limites institucionais às propostas mais duras e exigir maior pragmatismo na condução da agenda.
Ainda assim, o Chile inaugura o governo mais conservador desde o retorno à democracia em 1990, em um contexto no qual poucos governos de esquerda na região mantêm chances reais de continuidade eleitoral.
O episódio chileno, portanto, sinaliza não apenas uma alternância de poder local, mas uma inflexão estrutural no ciclo político latino-americano, com implicações relevantes para o ambiente institucional, econômico e de investimentos nos próximos anos.
Esse movimento de desgaste dos governos incumbentes está longe de ser um fenômeno novo. Tenho chamado atenção para essa dinâmica há mais de dois anos, à medida que ela se repete, com nuances locais, em diferentes países e regiões.
Na América do Sul, esse processo tem se combinado a uma busca crescente por lideranças percebidas como mais pró-mercado, reformistas e, ao menos, comprometidas com alguma disciplina fiscal.
Brasil e a diversificação global de portfólios
O Brasil, em tese, pode se inserir nesse mesmo movimento, mas isso dependerá sobretudo da capacidade de a oposição se organizar de forma coesa, competitiva e capaz de oferecer uma alternativa crível ao eleitorado.
Ao longo de 2025, o país também vem sendo beneficiado por um fenômeno mais amplo de diversificação global de portfólios. Em um ambiente internacional que se mostra particularmente construtivo para mercados emergentes — possivelmente o mais favorável dos últimos 15 anos —, o Brasil passou a integrar com mais força o radar dos investidores globais.
Isso ocorre apesar da presença de ruídos relevantes no curto prazo, como a fragilidade fiscal, tensões diplomáticas com viés ideológico e a antecipação do debate eleitoral de 2026, fatores que elevam a volatilidade e limitam o desempenho dos ativos, mas não alteram, até aqui, a direção estrutural do movimento.
É importante ressaltar que essa não é uma narrativa exclusiva do Brasil, mas parte de uma transformação mais ampla no cenário global. Investidores internacionais começam, de forma gradual, a reduzir a histórica concentração de capital nos Estados Unidos e a buscar alternativas em economias emergentes.
Nesse processo, o Brasil se beneficia de atributos relevantes, como peso significativo nos principais índices globais, elevada liquidez de seus mercados e uma atratividade relativa que volta a se destacar após anos de desinteresse.
O pano de fundo dessa rotação global combina três vetores centrais: o aumento do intervencionismo político nos Estados Unidos, a recorrência de incertezas institucionais e o início de um ciclo de cortes de juros pelo Federal Reserve.
Esse conjunto tende a exercer pressão estrutural sobre o dólar ao longo do tempo. Já observamos uma primeira onda de enfraquecimento da moeda norte-americana, impulsionada por estratégias de diversificação, gestão de risco e proteção cambial por parte de investidores globais.
Uma segunda etapa desse movimento pode ganhar tração à medida que os juros nos EUA recuem de forma mais consistente e os diferenciais de taxas em relação a outras economias se ampliem.
Nesse contexto, os mercados emergentes voltam a ocupar posição de destaque não apenas na renda fixa, mas também nas bolsas, após mais de uma década em que os fluxos globais permaneceram excessivamente concentrados nos Estados Unidos — especialmente durante o período do chamado “excepcionalismo americano”.
Ainda assim, é fundamental reconhecer que o potencial de valorização dos ativos brasileiros poderia ser sensivelmente maior caso o país dispusesse de uma âncora fiscal mais sólida, previsível e crível.
No horizonte de médio e longo prazo, o principal fator de diferenciação continuará sendo a capacidade de restaurar a confiança nas contas públicas e avançar de maneira consistente em reformas estruturais.
Mais do que o resultado eleitoral isolado, o que sustenta de forma duradoura a valorização dos ativos é a coordenação entre política fiscal e monetária, combinada a uma agenda clara de reformas capaz de estabilizar a trajetória da dívida e fortalecer o crescimento econômico de maneira sustentável.
O caminho até as eleições no país
O caminho até as eleições, contudo, segue cercado de incertezas. A possibilidade de uma mudança relevante na condução da política econômica dependerá, em última instância, da capacidade de a oposição se organizar em torno de um nome efetivamente viável — competitivo, com espaço para crescimento e níveis de rejeição administráveis —, em vez de dispersar capital político em candidaturas pouco palatáveis ao eleitor mediano ou em disputas internas prolongadas.
Como tenho argumentado de forma recorrente, eleições no Brasil tendem a ser decididas menos pelo desempenho do governo em si e mais pela qualidade, coesão e credibilidade da alternativa que se apresenta ao eleitorado.
O que parecia uma inflexão mais construtiva desde o fim de outubro, com a pauta da segurança pública ganhando centralidade no debate político, acabou sendo parcialmente desorganizado pela entrada de Flávio Bolsonaro no radar presidencial.
Uma eventual candidatura do senador é percebida pelo mercado como significativamente menos competitiva, em razão de sua elevada rejeição — reflexo tanto do desgaste natural associado ao bolsonarismo quanto da frustração do eleitorado de centro, que enxergava na emergência de um nome alternativo a chance de romper a polarização atual.
Esse redesenho das expectativas elevou a aversão ao risco, devolveu volatilidade aos ativos brasileiros e, na leitura dos agentes econômicos, aumentou a probabilidade de continuidade do atual projeto político a partir de 2027.
Com isso, reduziu-se a percepção de uma mudança na política econômica — mudança considerada fundamental para destravar uma agenda mais reformista e fiscalmente responsável. Ainda que o processo eleitoral esteja longe de qualquer definição final, o que torna prematura qualquer conclusão definitiva, a reação recente do mercado deixou claro que o percurso até 2026 tende a ser marcado por episódios recorrentes de tensão e instabilidade.
Os movimentos da família Bolsonaro
Nesse contexto, os movimentos da família Bolsonaro têm sido interpretados como desorganizados e excessivamente focados na preservação de sua própria liderança dentro do campo da direita. Na prática, esse comportamento acaba favorecendo politicamente o presidente Lula.
Mais uma vez, a oposição atua — ainda que de forma involuntária — como um vetor de fortalecimento do governo: primeiro, com Eduardo Bolsonaro e os ruídos gerados em torno de tarifas e sanções envolvendo os Estados Unidos; agora, com Flávio Bolsonaro, cuja movimentação dificulta a articulação, a coesão e a construção de uma alternativa eleitoral mais competitiva.
O efeito prático desse conjunto de movimentos tem sido o aumento da instabilidade política e a redução da previsibilidade do cenário eleitoral — dois fatores que, no curto prazo, costumam pesar negativamente sobre os ativos domésticos.
A partir desse pano de fundo, alguns cenários passam a ganhar contornos mais nítidos.
Um deles parte da leitura de que a família Bolsonaro percebeu uma erosão contínua de seu capital político ao longo dos últimos meses — processo que teria se intensificado após a prisão do ex-presidente — justamente no momento em que o campo da direita começava a se reorganizar de maneira mais orgânica em torno do nome de Tarcísio de Freitas.
Nesse contexto, a pré-candidatura de Flávio Bolsonaro pode ser interpretada como uma reação desordenada, com o objetivo de recuperar protagonismo e manter o clã no centro do debate político.
Há também uma dimensão estratégica por trás desse movimento. Uma das hipóteses aventadas nos bastidores é que a candidatura serviria como instrumento de barganha política futura.
Entre os cenários possíveis, estaria a construção de uma negociação que envolvesse uma posição de vice-presidência em uma chapa competitiva, associada a um eventual indulto presidencial em 2027 — ainda que a inelegibilidade fosse mantida, garantir-se-ia ao menos a liberdade do patriarca.
Sob essa ótica, a movimentação de Flávio poderia, curiosamente, funcionar como um mecanismo de “blindagem” temporária do nome de Tarcísio até março, evitando uma exposição precoce. O custo, no entanto, seria elevado: a desorganização do campo oposicionista como um todo, que teria pouco tempo, a partir de abril, para se reestruturar plenamente.
Potenciais consequências
Ainda existe margem temporal para esse jogo político. Faltam cerca de dez meses para as eleições, período suficiente para reviravoltas relevantes, mas não sem gerar, ao longo do caminho, novas ondas de volatilidade para o mercado.
O cenário alternativo, contudo, é especialmente desfavorável à família Bolsonaro. Caso insistam na candidatura de Flávio até o fim, acabam por transferir uma vantagem expressiva ao lulopetismo, ao mesmo tempo em que fragilizam politicamente tanto o ex-presidente quanto o próprio senador — que, em 2027, ficaria exposto sem a proteção do foro privilegiado.
Além disso, esse desfecho tenderia a prolongar por mais quatro anos o processo de enfraquecimento do bolsonarismo, que já não apresenta a mesma força eleitoral observada em 2018 e 2022.
Em outro possível desdobramento, uma candidatura paralela de um nome como Ratinho Jr., por exemplo, poderia ganhar tração justamente por carregar níveis de rejeição significativamente mais baixos do que os de Flávio.
Isso abriria um cenário ainda mais adverso para a família Bolsonaro, no qual um candidato sem vínculos diretos com o clã poderia se viabilizar eleitoralmente e ocupar o espaço da direita competitiva.
Seja como for, o desenho que hoje parece mais plausível é o da manutenção dessa narrativa ao menos até março, com uma eventual transferência de protagonismo para Tarcísio de Freitas, a depender da evolução das condições políticas.
Caso a oposição persista na fragmentação e na priorização de disputas internas, em vez de convergir para um nome agregador e eleitoralmente viável, o Brasil corre o risco de ficar à margem da tendência regional observada em outros países da América Latina. Ainda assim, permanece aberta a possibilidade de uma reorganização mais racional no início do próximo ano.
Pesquisas recentes têm sinalizado um ambiente relativamente mais favorável a candidaturas moderadas para 2026, especialmente de centro-direita, com o fortalecimento de nomes menos extremados nos levantamentos divulgados.
A disputa tende a ser definida pela capacidade de conquistar esse eleitorado mais sóbrio e pragmático — o que coloca em evidência candidatos com maior potencial de crescimento e menor rejeição, características decisivas tanto para o desfecho político quanto para a precificação dos ativos brasileiros.