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A suspensão da Moratória da Soja pelo Cade: entre litígios domésticos e a nova regulação europeia

19 ago 2025, 16:18 - atualizado em 19 ago 2025, 16:18
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(Foto: Reuters/Jorge Adorno)

A decisão liminar da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), suspendendo a Moratória da Soja, marca uma atualização na relação entre acordos privados de sustentabilidade e o ordenamento brasileiro.

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Pela primeira vez em quase 20 anos, o pacto voluntário firmado por tradings e associações é formalmente enquadrado sob a ótica concorrencial, acusado de restringir artificialmente o mercado e de impor custos desproporcionais aos produtores.

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A medida preventiva decorre do processo administrativo aberto contra a Abiove, a Anec e 30 empresas signatárias da moratória, que desde 2006 se comprometeram a não comprar grãos cultivados em áreas desmatadas do bioma Amazônia após 22 de julho de 2008.

Segundo o Cade, esse alinhamento de condutas configura indício de cartelização, com potenciais efeitos anticompetitivos e prejuízo à livre iniciativa.

Da origem ambiental ao questionamento jurídico

Criada em um momento de forte pressão internacional contra o desmatamento, a moratória representou, à época, uma resposta empresarial inovadora.

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As tradings buscaram dar previsibilidade ao mercado externo e blindar a soja brasileira de barreiras comerciais. Não se pode negar que o pacto teve efeitos ambientais relevantes, sobretudo em um contexto no qual o Código Florestal ainda não havia sido reformado.

O problema, contudo, é que a moratória avançou sobre temas de competência legal, impondo um marco temporal absoluto de 2008 mesmo para desmatamentos legais e autorizados pelo poder público.

Enquanto o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) admite hipóteses de supressão de vegetação em conformidade com autorizações ambientais, a moratória passou a invalidar tais permissões de desmate legal.

O resultado foi um crescente descompasso e conflito entre a regulação estatal e a autorregulação privada, com impacto direto sobre produtores que cumpriam rigorosamente a lei.

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O conflito em Mato Grosso

Esse descompasso ficou evidente em Mato Grosso, maior produtor nacional de soja. Em 2024, o estado aprovou a Lei Estadual nº 12.709/2024, proibindo a concessão de incentivos fiscais a empresas que participem de acordos comerciais mais exigentes que a legislação brasileira.

A lei foi questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) por partidos políticos na Ação Direta de Constitucionalidade 7.774, com concessão de liminar suspendendo a lei. Entretanto, em 2025, o ministro Flávio Dino restabeleceu parcialmente seus efeitos – a lei está em vigor.

Segundo Dino, a adesão empresarial à moratória continua válida, mas o poder público não está obrigado a conceder benefícios a companhias que imponham critérios não previstos na lei federal.

O reconhecimento do STF, portanto, reforçou a ideia de que a moratória não possui força vinculante perante o Estado e não pode se sobrepor ao Código Florestal como referência regulatória.

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Esse caso evidencia como a disputa em torno da moratória extrapola a questão ambiental e ingressa na esfera da soberania legislativa e da segurança jurídica.

Para os produtores de Mato Grosso, a existência de dois padrões paralelos – um legal e outro privado – resultou em discriminação comercial, perda de competitividade e obstáculos no acesso ao crédito.

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A dimensão concorrencial: o olhar do Cade

Com a representação da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, o CADE passa a analisar a moratória não como política ambiental, mas como conduta concorrencial. 

Segundo a representação, de acordo com o artigo 36 da Lei nº 12.529/2011, a Moratória da Soja pode configurar infração à ordem econômica, já que reúne concorrentes em um acordo que uniformiza critérios de compra e restringe o mercado ao excluir produtores que cumprem a lei. 

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Essa leitura faz parte de uma tendência global – autoridades antitruste têm reforçado que sustentabilidade não pode servir de escudo para cartelização.

A União Europeia e o Reino Unido já publicaram guias de “green agreements”, alertando que acordos ambientais só são admissíveis quando indispensáveis, transparentes e não excludentes. Nos Estados Unidos, a Federal Trade Commission adota posição ainda mais restritiva.

No Brasil, onde ainda não há previsão legal clara de isenção concorrencial por razões ambientais, o Cade demonstra seguir a mesma lógica: práticas potencialmente anticompetitivas não são legitimadas por eventuais benefícios ambientais.

O EUDR e a perda de objeto da moratória

Paralelamente às disputas internas, um fator externo torna a moratória cada vez menos relevante: o Regulamento de Desmatamento da União Europeia (EUDR).

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Aprovado em 2023 e com implementação plena a partir de 2026, o EUDR estabelece que soja, carne e outras commodities só poderão ingressar no mercado europeu se comprovarem não estar associadas a áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020.

A exigência europeia é mais recente e mais abrangente que a da moratória. Diferentemente do acordo voluntário de 2006, o EUDR tem força legal e aplica-se de forma uniforme a todos os exportadores.

Na prática, isso significa que as tradings precisarão atender ao marco de 2020, independentemente da continuidade da moratória. O pacto privado, portanto, perde objeto diante de uma regulação vinculante e internacionalmente reconhecida.

Implicações econômicas e políticas

A sobreposição de normas e acordos setoriais voluntários cria um ambiente de incerteza. Para os produtores, em especial de médio porte, a coexistência de um pacto privado, de um marco legal nacional e de uma regulação internacional representa custos adicionais e risco de exclusão do mercado.

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Para as tradings, a suspensão liminar do Cade gera preocupação reputacional, mas também abre espaço para a construção de um modelo de governança baseado em regras públicas claras.

Do ponto de vista político, o episódio simboliza o avanço da estatização de padrões ESG: critérios que nasceram em pactos voluntários corporativos passam a ser internalizados em legislações nacionais e blocos econômicos, como o EUDR e a versão britânica da mesma norma. 

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Conclusão

A suspensão da Moratória da Soja pelo Cade não significa o fim imediato do pacto, mas inaugura um ciclo de reavaliação. O histórico de conflitos em Mato Grosso e a decisão do STF já haviam sinalizado a fragilidade jurídica do instrumento.

Agora, com o EUDR impondo um marco temporal distinto e mais recente, a moratória parece se esvaziar, restando apenas como símbolo de um período em que empresas ocuparam o vácuo regulatório deixado pelo Estado.

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O desafio brasileiro, daqui em diante, será harmonizar competitividade, legalidade e sustentabilidade em um ambiente de governança multinível.

Isso implica fortalecer o Código Florestal como referência interna, alinhar-se às exigências internacionais e evitar que acordos privados se transformem em mecanismos de exclusão econômica.

A decisão do Cade, nesse sentido, pode ser vista menos como ruptura e mais como realinhamento: o Brasil sai de um modelo de autorregulação corporativa e ingressa em uma era em que a regulação pública – nacional e internacional – define as balizas do jogo.

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Advogado. Doutor e Master of Laws em Direito Ambiental pela Pace University School of Law, Mestre em Direito dos Negócios na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGVLaw).
leonardo.munhoz@autor.moneytimes.com.br
Advogado. Doutor e Master of Laws em Direito Ambiental pela Pace University School of Law, Mestre em Direito dos Negócios na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGVLaw).