Lei da Mata Atlântica sob ataque? Caso do CT de Neymar expõe riscos e insegurança jurídica

Quando Neymar da Silva Santos, pai do astro do futebol Neymar Jr., anunciou a construção de um novo centro de treinamento do Santos Futebol Clube em uma área de 40 mil m² com vegetação nativa na Zona Sul de São Paulo, a repercussão extrapolou o universo esportivo.
A licença foi concedida pela CETESB com base em vegetação em estágio médio de regeneração, sem anuência do Ibama e sem estudo de impacto ambiental.
A reação de organizações ambientalistas e do Ministério Público acendeu um sinal amarelo sobre a fragilidade da proteção da Mata Atlântica, bioma que, apesar de ser protegido constitucionalmente, tem sofrido sucessivos ataques normativos.
O episódio é apenas o mais recente sintoma de uma controvérsia jurídica mais profunda: a compatibilidade entre a Lei da Mata Atlântica, o Código Florestal e o Licenciamento Ambiental.
A disputa envolve conceitos como áreas consolidadas, competências federativas e a exigência de anuência federal para supressões vegetais em biomas protegidos.
A Lei da Mata Atlântica
Promulgada em 2006, a Lei da Mata Atlântica foi concebida como uma norma especial de proteção do bioma, previsto expressamente na Constituição Federal.
A lei estabeleceu regras mais rígidas para supressão de vegetação nativa primária ou secundária em qualquer estágio de regeneração, especialmente exigindo anuência do Ibama para intervenções em estágio médio ou avançado.
O problema é que a Lei da Mata Atlântica foi construída com base no antigo Código Florestal de 1965, que foi expressamente revogado em 2012, quando entrou em vigor a Lei nº 12.651/2012.
O novo Código introduziu instrumentos de regularização ambiental (como o CAR e o PRA), previu o conceito de áreas rurais consolidadas e permitiu a manutenção de atividades agrossilvipastoris estabelecidas até julho de 2008 em Áreas de Preservação Permanente (APP).
A questão central que se impõe é: o que prevalece – a Lei da Mata Atlântica ou o Código Florestal de 2012?
Conflito normativo?
O Ministério Público Federal, em ações civis públicas, como a ajuizada nos últimos anos no Paraná, têm defendido que a Lei da Mata Atlântica, por ser especial, não foi revogada e deve prevalecer sobre o Novo Código Florestal.
Com isso, sustenta que as regras de consolidação e regularização previstas nos artigos 61-A e 61-B do Código (áreas diferenciadas de APP) não se aplicam à Mata Atlântica, e que somente áreas com utilidade pública poderiam ser suprimidas, mediante estudo de impacto ambiental – bioma mata atlântica estaria excluído dos dispositivos do Código Florestal.
Entretanto, essa interpretação desconsidera que a própria Lei da Mata Atlântica nunca operou de forma isolada. Desde sua origem, e que foi regulamentada por um decreto próprio (nº 6.660/2008), reconhece expressamente a existência de áreas já ocupadas com agricultura, pastagens ou cidades – ou seja, sempre houve interpretação conjunta com o Código Florestal.
Ademais, o novo Código Florestal foi julgado constitucional pelo STF em 2018, que reconheceu a validade de todos os seus dispositivos.
Também, o STJ, ao julgar ações envolvendo o Cadastro Ambiental Rural (CAR), tem aplicado os artigos o novo Código Florestal de 2012 em detrimento de interpretações isoladas do Código Florestal Revogado de 1965.
Precedentes do STF
Em julgados recentes (Reclamação 69.816/SP), o STF reforçou que decisões judiciais que afastam a aplicação do Novo Código Florestal de 2012 violam a autoridade dos seus precedentes e esvaziam a eficácia de norma já declarada constitucional.
Nesse sentido, a solução jurídica sendo desenhada é compatibilizar o Novo Código Florestal com a Lei da Mata Atlântica, com uma interpretação sistemática do ordenamento ambiental, que leve em conta a função normativa de cada lei.
O Código Florestal funciona como lei geral de proteção da vegetação nativa em imóveis rurais e urbanos (APP), aplicável a todo o território nacional e voltado à regularização ambiental, por meio de instrumentos como o CAR e as regras de regularização e de consolidação de uso do solo.
Já a Lei da Mata Atlântica é uma lei especial de proteção de bioma, com foco na preservação da vegetação remanescente e na restrição de supressões.
Em vez de se sobrepor, essas normas devem ser lidas de forma complementar: a Lei da Mata Atlântica determina os critérios de uso e conservação específicos para o bioma, enquanto o Código Florestal fornece os instrumentos operacionais para implementação da regularização ambiental e do controle territorial.
Essa leitura evita conflitos normativos, garante segurança jurídica e assegura maior efetividade à política ambiental brasileira.
Vetos na Licenciamento Ambiental: risco concreto à estrutura da Lei da Mata Atlântica?
O texto aprovado pelo Congresso Nacional do PL nº 2.159/2021 incluía, no artigo 60, a revogação dos §§ 1º e 2º do artigo 14 da Lei da Mata Atlântica, suprimindo a exigência de anuência do Ibama para autorizar a supressão de vegetação secundária em estágio médio ou avançado de regeneração.
Na prática, essa mudança transferiria exclusivamente aos órgãos estaduais a decisão, eliminando a instância federal de revisão e fiscalização em casos potencialmente sensíveis para a integridade do bioma.
Importante destacar que essa alteração poderia configurar um “jabuti legislativo”, por tratar de matéria estranha ao núcleo temático do PL – que versa sobre procedimentos de licenciamento, e não sobre regras materiais específicas de proteção a biomas.
Essa prática já foi reiteradamente rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, que entende que mudanças dessa natureza violam o devido processo legislativo e comprometem a segurança jurídica (ex.: ADI 5127/DF).
Além disso, a medida pode ser interpretada como um enfraquecimento do regime federativo de proteção ambiental estabelecido pela Constituição Federal e pela Lei Complementar nº 140/2011, que prevê mecanismos de atuação conjunta e cooperação entre União, Estados e Municípios para a proteção de áreas de alta relevância ecológica.
Ao sancionar a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (Lei nº 15.190/2025), o Presidente da República vetou essa modificação, preservando a exigência de anuência prévia do Ibama e resguardando salvaguardas ambientais já consolidadas.
Esse veto se alinha à posição histórica do STF de que a Lei da Mata Atlântica possui status de norma especial protetiva de bioma, não podendo ser enfraquecida por dispositivos genéricos ou por reduções indiretas de seu alcance por meio de leis gerais.
Considerações finais: rumo à insegurança jurídica?
A fragilidade atual da Lei da Mata Atlântica não reside apenas em sua possível revogação pontual, mas na forma como pode ser progressivamente esvaziada por omissão regulatória, conflito interpretativo e reformas legais desconectadas de seu propósito original.
A construção do CT do Santos sem anuência federal é um retrato sintomático dessa insegurança normativa. A nova Lei de Licenciamento Ambiental inaugura um marco nacional unificado, mas seus vetos mostram que a proteção de biomas especiais segue como um campo de tensão — onde o equilíbrio entre simplificação procedimental e preservação ambiental será continuamente testado nos tribunais e na prática administrativa.
A resposta necessária não está na exclusão de normas, mas sim na reconciliação normativa – construindo uma articulação coerente entre leis gerais e especiais, respeitando os pactos constitucionais de proteção aos biomas, o papel das autoridades ambientais e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.