Mercado passa por mudança silenciosa, mas profunda

O mercado financeiro passou por uma transformação silenciosa, mas profunda. O que antes era uma relação direta entre o investidor e o gestor, baseada em confiança, diálogo e entendimento mútuo, tornou-se uma cadeia de intermediações, plataformas e discursos genéricos.
O investidor, que lia cartas, acompanhava decisões e compreendia os riscos, foi substituído por um consumidor de produtos financeiros embalados, rotulados e vendidos como soluções prontas.
As cartas dos gestores, que antes explicavam escolhas e estratégias, tornaram-se peças de marketing.
Expressões como “seguimos atentos”, “mantemos disciplina” e “vemos oportunidades” ocupam o lugar de análises reais.
Algumas são escritas por inteligência artificial, o conservante ideal para manter o texto polido e sem atrito.
O conteúdo perdeu textura, autoria e sabor.
O gestor, que antes colocava sua reputação em jogo, hoje coloca o texto em uma ferramenta automatizada e o público na indiferença.
O investidor não sabe mais quem gere seu patrimônio. As decisões passam por assessores, influenciadores, departamentos de marketing e robôs. O contato direto desapareceu.
Produtos como COEs, FIDCs e FIIs são oferecidos sem clareza, sem rosto, sem explicação.
O cliente não sabe onde está seu dinheiro, que risco corre, quanto pode ganhar ou perder.
E o assessor, remunerado por venda e não por performance, também não compreende o que está oferecendo. A comissão está garantida, mesmo que o cliente perca.
Essa desconexão não é casual.
Ela é resultado de um modelo que favorece a concentração de renda e a padronização das relações. O gestor não conhece o cliente.
O cliente não conhece o gestor.
O dinheiro perdeu identidade. O diálogo foi substituído por um funil de vendas. A regulamentação, moldada pelos grandes bancos, reforça esse anonimato.
O compliance e o marketing atuam como conservantes: evitam o risco de estragar, mas também removem o sabor da verdade.
O investidor compra “diversificação” e “segurança”, acreditando que isso o protegerá. Mas o retorno é medíocre.
A confiança está no rótulo, não no conteúdo. E quanto mais distante o consumidor está de quem faz, mais aditivos podem ser colocados — no produto e no discurso.
Esse fenômeno não é exclusivo do setor financeiro.
A indústria de alimentos passou por processo semelhante. O consumidor se afastou da fazenda, da cozinha, da receita.
Deixou de saber quem planta, quem colhe, quem tempera.
A comida tornou-se prática, industrial, cheia de estabilizantes, corantes e conservantes. O vínculo foi substituído por storytelling. O sabor, por química.
Produtos prometem ser “naturais”, “artesanais”, “feitos com amor”, mas são embalados por máquinas e vendidos por slogans.
O consumidor compra “zero açúcar” e “light” acreditando que está fazendo uma escolha saudável, mesmo sabendo que não é bem assim. A confiança está no rótulo. O conteúdo é desconhecido.
A ausência de contato direto é o fertilizante da mediocridade. Na alimentação, o conservante mantém o produto vendável.
No mercado financeiro, o marketing e o compliance fazem o mesmo.
Ambos removem o risco de estragar — e também a autenticidade. O sabor da verdade, a beleza dos ingredientes, a origem do processo, tudo se perde.
O futuro saudável — nas finanças e na vida — está no reencantamento pelo simples.
Voltar a saber quem produz o que se consome.
Falar com o gestor como se fala com o agricultor.
Entender o processo, não apenas o resultado. Aceitar a imperfeição artesanal em vez da perfeição industrial.
Porque, no fim das contas, o dinheiro, como a comida, não é um produto. É uma relação. E relações não sobrevivem a tantos aditivos.
Quanto mais longe o cliente está de quem faz, mais envenenado o produto se torna.
Na mesa e na carteira.