Coluna do Roberto Ribas

Nike e a transformação digital: quando a estratégia alinhada surpreende nos resultados

13 out 2024, 12:00 - atualizado em 10 out 2024, 11:11
Nike
A Nike, apesar de enfrentar desafios significativos, continua sendo uma das marcas mais reconhecidas e admiradas do mundo. (Imagem: Pixabay/CaptainRunning)

Nos últimos anos, a Nike embarcou em mudanças ambiciosas, colocando em prática várias das estratégias mais recomendadas para empresas que buscam se adaptar a um mundo cada vez mais online.

No entanto, apesar do alinhamento dessas iniciativas com as melhores práticas de transformação digital, os resultados foram surpreendentemente negativos. A Nike falhou na sua execução, ou é hora de repensar as orientações predominantes sobre a transformação digital?

Desde que John Donahoe assumiu como CEO em 2020, a Nike buscou se modernizar por meio de mudanças estruturais e operacionais significativas. A empresa eliminou suas tradicionais categorias de produtos (como corrida, futebol e basquete) e reorganizou seu portfólio com foco em produtos por gênero — masculino, feminino e infantil. Essa decisão visava simplificar a estrutura interna, reduzir custos e otimizar a eficiência, substituindo a expertise em categorias específicas por um modelo mais flexível e orientado por dados.

Além disso, a Nike apostou em um modelo de vendas diretas ao consumidor (DTC), colocando o controle da experiência de compra nas suas próprias mãos. Ao minimizar a dependência do atacado e priorizar o e-commerce, pretendia maximizar as margens de lucro e construir um relacionamento mais próximo com seus clientes.

Complementando essa mudança, também centralizou suas operações de marketing em plataformas digitais, investindo fortemente em publicidade programática e marketing de performance para impulsionar o tráfego para seu site e converter consumidores em clientes fiéis.

Essas ações estão claramente alinhadas com as tendências atuais de transformação digital, que promovem uma abordagem mais direta ao consumidor, uso intensivo de dados e otimização digital para melhorar a eficiência e a resposta ao mercado. Em teoria, a Nike seguiu à risca o manual contemporâneo de digitalização, aplicando as práticas que consultorias e especialistas em negócios têm incentivado em todo o mundo.

Apesar disso, os resultados foram inesperadamente negativos. A eliminação das categorias tradicionais, por exemplo, resultou na perda de expertise especializada e na diminuição da inovação em produtos. A falta de foco em segmentos específicos levou a uma percepção de que a empresa estava perdendo seu diferencial competitivo, especialmente em áreas onde antes era líder.

A transição para o modelo DTC também enfrentou obstáculos significativos. A Nike, ao tentar controlar diretamente toda a cadeia de distribuição e experiência do consumidor, não conseguiu prever e gerenciar eficientemente o impacto operacional. A empresa viu seus níveis de estoque aumentarem drasticamente devido a previsões de demanda incorretas, e a resposta a esses problemas foi inundar o mercado com descontos e promoções, o que, por sua vez, causou uma erosão das margens de lucro.

No marketing, a ênfase em campanhas digitais e publicidade programática gerou visibilidade, mas com pouco efeito positivo a longo prazo sobre a construção da marca e a lealdade do consumidor. Ao focar mais em conversões imediatas e menos em narrativas de marca fortes e emocionantes, perdeu parte da sua conexão emocional com os consumidores, elemento que tradicionalmente diferenciava suas campanhas.

O que é realmente “transformação digital”?

Os resultados provocam uma reflexão sobre o que realmente significa “transformação digital”. Em primeiro lugar, é importante reconhecer que as iniciativas da Nike não foram arbitrárias; elas estavam fortemente alinhadas com as recomendações predominantes que incentivam a centralização digital, o foco no consumidor e o uso intensivo de dados. Então, por que essas estratégias não funcionaram conforme o esperado?

Uma possível resposta é que, enquanto as táticas estavam corretas em teoria, a execução pode ter falhado em capturar nuances críticas. A transformação digital bem-sucedida não é apenas uma questão de seguir as tendências, mas também de entender profundamente o contexto da marca, a base de consumidores e o mercado no qual ela opera.

No caso da Nike, a transição para um modelo DTC e a centralização digital talvez tenham sido rápidas demais, sem considerar o ritmo adequado para seus consumidores tradicionais e a importância de suas relações históricas com parceiros de atacado.

Por outro lado, os resultados podem sugerir que algumas premissas da transformação digital precisam ser revistas. A orientação predominante tem enfatizado a eliminação de intermediários, a centralização do controle sobre a experiência do cliente e o foco em dados como o principal motor de decisão. No entanto, a experiência da Nike sugere que essas estratégias, quando aplicadas de forma rígida ou sem a devida adaptação, podem comprometer o valor da marca, a lealdade do consumidor e a capacidade de inovar de forma sustentável.

Equilíbrio entre inovação e legado

Essa experiência é uma ilustração poderosa de como a transformação digital, embora essencial, deve ser abordada com um olhar crítico e adaptativo. As empresas devem equilibrar a necessidade de inovação com o respeito por seu legado, compreendendo que o sucesso digital não depende apenas da adoção de novas tecnologias ou estratégias, mas da integração harmoniosa dessas mudanças com os valores e a identidade da marca.

A Nike, apesar de enfrentar desafios significativos, continua sendo uma das marcas mais reconhecidas e admiradas do mundo. No entanto, sua experiência recente destaca a necessidade de reavaliar como as estratégias de transformação digital são implementadas. Talvez, em vez de seguir cegamente as orientações predominantes, as companhias precisem adaptar essas diretrizes às suas realidades específicas, considerando não apenas o potencial da digitalização, mas também o impacto que essas mudanças podem ter em sua essência e relacionamento com os consumidores.

No final das contas, a jornada da Nike mostra que a transformação digital é complexa e multifacetada, e que a simples aplicação de práticas recomendadas não garante sucesso. Para prosperar em um mundo digital, as empresas precisam combinar inovação com um profundo entendimento de suas próprias forças, fraquezas e valores fundamentais.

Compartilhar

TwitterWhatsAppLinkedinFacebookTelegram
Chief Strategy Officer e membro do conselho da Brivia
Roberto Ribas é Chief Strategy Officer e membro do conselho da Brivia. Com 22 anos de experiência, ao longo da trajetória, concebeu a metodologia BXM (Brand Experience Management) e sempre esteve na liderança de times multidisciplinares, na concepção e desenvolvimento de projetos de estratégias de marca e transformação digital para grandes marcas. Atuou no fortalecimento do setor, sendo co-fundador e ex-presidente da Associação Brasileira de Agências Digitais (ABRADi/RS). É formado pela UFRGS e tem especialização em Marketing pela ESPM.
roberto.ribas@moneytimes.com.br
Linkedin Site
Roberto Ribas é Chief Strategy Officer e membro do conselho da Brivia. Com 22 anos de experiência, ao longo da trajetória, concebeu a metodologia BXM (Brand Experience Management) e sempre esteve na liderança de times multidisciplinares, na concepção e desenvolvimento de projetos de estratégias de marca e transformação digital para grandes marcas. Atuou no fortalecimento do setor, sendo co-fundador e ex-presidente da Associação Brasileira de Agências Digitais (ABRADi/RS). É formado pela UFRGS e tem especialização em Marketing pela ESPM.
Linkedin Site

Usamos cookies para guardar estatísticas de visitas, personalizar anúncios e melhorar sua experiência de navegação. Ao continuar, você concorda com nossas políticas de cookies.

Fechar