Coluna
Thinking outside the box

O enfraquecimento do dólar: o novo ciclo geopolítico que redefine o mapa do capital global

24 out 2025, 17:47 - atualizado em 24 out 2025, 17:47
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(istock.com/MicroStockHub)

Discute-se com intensidade crescente se o mundo está, de fato, diante do início de um processo estrutural de desdolarização ou apenas de um movimento pontual e reversível, motivado por tensões conjunturais. Essa análise não implica o “fim do poder americano” nem o colapso do excepcionalismo dos Estados Unidos — conceito que ganhou força após a crise financeira de 2008, com a expansão maciça da liquidez global, o domínio das big techs e a reafirmação do dólar como pilar central do sistema monetário internacional.

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O dólar permanece como a principal moeda de reserva global, posição consolidada desde Bretton Woods (1944), mas sua hegemonia começa a ser desafiada. A guinada nacionalista da política econômica de Donald Trump, marcada por tarifas, revisões de acordos comerciais e um discurso abertamente protecionista, tem pressionado a confiança internacional na moeda americana, levantando dúvidas sobre sua estabilidade de longo prazo.

Desde o chamado “Dia da Libertação”, quando foram anunciadas tarifas recíprocas, a percepção global sobre o dólar se deteriorou gradualmente. Investidores passaram a questionar inclusive o status histórico da divisa como porto seguro, em meio a uma desconexão crescente entre seu comportamento e o das taxas de juros americanas, um dos pilares que tradicionalmente sustentavam sua força.

A esse quadro se somam fatores domésticos: o impacto fiscal do “One Big Beautiful Bill Act”, que consolidou déficits elevados e uma trajetória de endividamento insustentável, além da pressão política sobre o Federal Reserve para acelerar cortes de juros. O resultado é um dólar mais vulnerável, sujeito às incertezas fiscais, institucionais e de governança dos próprios Estados Unidos. Embora o país siga sendo a maior economia do planeta, já não desfruta da hegemonia incontestável que caracterizou as décadas de 1990 e início dos 2000 — o mundo parece avançar para uma ordem mais multipolar, na qual o poder econômico e financeiro é mais distribuído.

Essa transformação traz implicações amplas, tanto internas quanto globais. O auge da hegemonia americana coincidiu com a era da hiperglobalização, impulsionada pela entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, que promoveu um superciclo de commodities e beneficiou países exportadores como o Brasil. Ao mesmo tempo, gerou desequilíbrios sociais e produtivos profundos: enquanto a classe trabalhadora asiática ascendeu economicamente, a classe média industrial do Ocidente se viu estagnada — uma frustração que acabou alimentando movimentos nacionalistas e populistas, hoje cada vez mais influentes, sustentados pela promessa de “trazer a indústria de volta” e restaurar o poder econômico doméstico.

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Há espaço legítimo para políticas de industrialização estratégica, especialmente em setores considerados críticos para a segurança nacional, como energia, tecnologia, defesa e infraestrutura. No entanto, a ideia de uma reindustrialização ampla e irrestrita, sustentada por protecionismo e autossuficiência total, é economicamente inviável e contraproducente. Tentar produzir internamente bens de baixo valor agregado encareceria produtos, reduziria a eficiência produtiva e distorceria cadeias de suprimentos globais que levaram décadas para se consolidar sob o paradigma da integração internacional.

O cenário atual, mais fragmentado e volátil, exige cadeias produtivas mais seguras e resilientes — do ponto de vista logístico, energético e alimentar e cibernético —, campo no qual o Brasil pode desempenhar papel estratégico, como fornecedor confiável de energia, alimentos e insumos críticos. Ainda assim, a estratégia americana recente, baseada em protecionismo, tarifas unilaterais e subsídios, tem minado a credibilidade internacional do dólar e enfraquecido sua posição como principal referência do sistema monetário global.

Para que o dólar perca de forma efetiva seu status de porto seguro global, seria necessário comprometer os pilares institucionais que sustentam sua credibilidade histórica: instituições sólidas, previsibilidade jurídica e respeito irrestrito aos direitos de propriedade. É exatamente nesse ponto que o estilo de governança de Trump tem levantado preocupações crescentes. O uso recorrente de ordens executivas, em detrimento do processo legislativo tradicional, introduz incerteza institucional, enfraquece os mecanismos de freios e contrapesos e reduz a confiança na resiliência democrática americana. Além disso, a combinação de protecionismo econômico, ruptura de alianças históricas, intervencionismo estatal em empresas e instituições e, mais recentemente, sinais de interferência política no Federal Reserve, ampliam os ruídos institucionais e corroem a imagem dos EUA como pilar de estabilidade global.

Esse desgaste institucional já começa a produzir efeitos concretos, reduzindo a capacidade dos EUA de atrair capitais externos no mesmo ritmo do passado — movimento que se intensificou a partir de 2022, quando Washington retirou a Rússia do sistema Swift e congelou suas reservas internacionais, acendendo um alerta em diversos países sobre o risco de dependência excessiva do sistema financeiro americano. Isso não significa, contudo, que os Estados Unidos deixarão de ser um destino privilegiado para o capital global: sua economia permanece a mais dinâmica e inovadora do mundo, e suas empresas continuam entre as mais lucrativas e competitivas do planeta. Como observa Howard Marks, é importante distinguir o “excepcionalismo das companhias americanas” — que segue vivo — do “excepcionalismo da nação”, hoje mais questionado.

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Para que o dólar seja efetivamente pressionado, não é necessária uma fuga em massa de capitais: basta uma leve redução nos fluxos financeiros. O país opera

com um déficit em conta corrente estrutural superior a 6% do PIB, o que o torna dependente de entradas constantes de capitais estrangeiros — via compra de Treasuries, ações e outros ativos — para equilibrar suas contas externas. Historicamente, esse fluxo foi mais do que suficiente para sustentar a moeda americana e reforçar seu papel central no sistema financeiro global. Hoje, porém, esse ciclo começa a perder vigor. Mesmo pequenas reduções nas entradas líquidas já provocam efeitos relevantes, dada a necessidade diária de financiamento externo, tornando o dólar mais suscetível às pressões fiscais, geopolíticas e institucionais do próprio país que o emite.

Os novos acordos anunciados por Donald Trump não foram suficientes para dissipar as dúvidas do mercado. Muitos deles não se concretizaram no passado (no primeiro mandato), envolvem prazos excessivamente longos e recursos majoritariamente domésticos, o que reduz seu impacto prático imediato. Assim, não é necessário um colapso de confiança global para pressionar o dólar — uma diversificação gradual de reservas e fluxos de capital para outras moedas e jurisdições já é suficiente para provocar o enfraquecimento da moeda americana.

Trump sempre deixou claro seu apreço por um dólar mais fraco, enxergando nele uma ferramenta para estimular exportações e competitividade industrial. Em certos momentos, chegou a alimentar especulações sobre um “acordo de Mar-a-Lago”, numa alusão ao Acordo Plaza de 1985, que coordenou a desvalorização do dólar entre grandes potências. Com o tempo, contudo, essa hipótese perdeu força. O enfraquecimento atual da moeda americana não decorre de uma política cambial deliberada, mas sim de efeitos colaterais das decisões políticas, fiscais e institucionais que vêm corroendo, de forma gradual, a confiança global no dólar.

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Boa parte do interesse dos investidores nos EUA hoje está concentrada nas chamadas “Sete Magníficas” — gigantes de tecnologia que puxam o desempenho das bolsas —, enquanto o restante do mercado apresenta retornos mais fracos que seus pares globais. Essa concentração aumenta a vulnerabilidade relativa dos ativos americanos, sobretudo em meio ao ciclo de cortes de juros em curso, que reduz o diferencial de taxas e estimula a realocação de capitais para outros mercados. Nesse contexto, o ouro vem se consolidando como alternativa direta ao dólar, atraindo fluxos diante das incertezas políticas e fiscais — da paralisação do governo (shutdown) ao desgaste institucional crescente. O metal, que superou US$ 4.100 por onça, tornou-se o reflexo mais visível dessa busca global por proteção e diversificação.

Desde o congelamento das reservas russas em 2022, bancos centrais vêm aumentando suas posições em ouro de forma consistente, buscando reduzir dependência do sistema financeiro americano. A combinação entre um dólar estruturalmente mais fraco, juros em queda e inflação persistentemente elevada cria um ambiente particularmente favorável ao metal, que hoje disputa espaço com os Treasuries e até com a própria moeda americana como principal “porto seguro” global. Além disso, a reorganização das cadeias produtivas em torno da segurança e da regionalização tende a gerar pressões inflacionárias adicionais, reforçando ainda mais o papel do ouro como reserva de valor.

Para o Brasil, esse cenário é relevante. Ciclos prolongados de dólar fraco costumam favorecer os ativos fora dos EUA, impulsionando o desempenho de mercados emergentes e europeus, à medida que os fluxos globais se diversificam. A questão central não é se o dólar perderá abruptamente seu trono, mas se continuará enfrentando uma rotação gradual e consistente de capitais internacionais, ainda que os EUA preservem liderança tecnológica e ganhos de produtividade com a inteligência artificial. Não se trata de um colapso do sistema ou do “fim do império americano”, mas de uma redistribuição progressiva de capital global, que já beneficia diversas praças — inclusive o Brasil.

Mesmo uma pequena fração dos recursos que, na última década, se concentraram quase exclusivamente nos Estados Unidos, se redirecionada para outras regiões, pode prolongar e consolidar o enfraquecimento do dólar. Nesse ambiente, o investidor brasileiro tem múltiplos caminhos estratégicos: o país tende a se beneficiar como “beta global” em ciclos de dólar mais fraco e juros internacionais menores, enquanto a diversificação internacional — em saúde e defesa na Europa, tecnologia e consumo na Ásia, além de ouro e criptoativos (em proporções controladas) — amplia a capacidade de capturar ganhos dessa transição. O tema da desdolarização, por muito tempo tratado como periférico, ganha contornos mais concretos em um mundo cada vez mais multipolar.

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Economista e especialista em investimentos da Empiricus
Estudou finanças na University of Regina, no Canadá, tendo concluído lá parte de sua graduação em economia pela PUC. Pós-graduado no Programa Avançado em Finanças do Insper, trabalhou em duas das maiores casas de análise de investimentos da América Latina, além de ter feito parte de uma boutique voltada para fusões e aquisições, na área de modelagem financeira e pesquisa. Hoje faz parte no time de analistas da Empiricus, participando de séries como Palavra do Estrategista e Double Income, além do programa Empiricus Private junto do Felipe Miranda, estrategista-chefe e um dos fundadores da casa. É analista CNPI e especialista em investimentos CEA.
matheus.spiess@moneytimes.com.br
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Estudou finanças na University of Regina, no Canadá, tendo concluído lá parte de sua graduação em economia pela PUC. Pós-graduado no Programa Avançado em Finanças do Insper, trabalhou em duas das maiores casas de análise de investimentos da América Latina, além de ter feito parte de uma boutique voltada para fusões e aquisições, na área de modelagem financeira e pesquisa. Hoje faz parte no time de analistas da Empiricus, participando de séries como Palavra do Estrategista e Double Income, além do programa Empiricus Private junto do Felipe Miranda, estrategista-chefe e um dos fundadores da casa. É analista CNPI e especialista em investimentos CEA.
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