O enfraquecimento do dólar: o novo ciclo geopolítico que redefine o mapa do capital global
Discute-se com intensidade crescente se o mundo está, de fato, diante do início de um processo estrutural de desdolarização ou apenas de um movimento pontual e reversível, motivado por tensões conjunturais. Essa análise não implica o “fim do poder americano” nem o colapso do excepcionalismo dos Estados Unidos — conceito que ganhou força após a crise financeira de 2008, com a expansão maciça da liquidez global, o domínio das big techs e a reafirmação do dólar como pilar central do sistema monetário internacional.
O dólar permanece como a principal moeda de reserva global, posição consolidada desde Bretton Woods (1944), mas sua hegemonia começa a ser desafiada. A guinada nacionalista da política econômica de Donald Trump, marcada por tarifas, revisões de acordos comerciais e um discurso abertamente protecionista, tem pressionado a confiança internacional na moeda americana, levantando dúvidas sobre sua estabilidade de longo prazo.
Desde o chamado “Dia da Libertação”, quando foram anunciadas tarifas recíprocas, a percepção global sobre o dólar se deteriorou gradualmente. Investidores passaram a questionar inclusive o status histórico da divisa como porto seguro, em meio a uma desconexão crescente entre seu comportamento e o das taxas de juros americanas, um dos pilares que tradicionalmente sustentavam sua força.
A esse quadro se somam fatores domésticos: o impacto fiscal do “One Big Beautiful Bill Act”, que consolidou déficits elevados e uma trajetória de endividamento insustentável, além da pressão política sobre o Federal Reserve para acelerar cortes de juros. O resultado é um dólar mais vulnerável, sujeito às incertezas fiscais, institucionais e de governança dos próprios Estados Unidos. Embora o país siga sendo a maior economia do planeta, já não desfruta da hegemonia incontestável que caracterizou as décadas de 1990 e início dos 2000 — o mundo parece avançar para uma ordem mais multipolar, na qual o poder econômico e financeiro é mais distribuído.
Essa transformação traz implicações amplas, tanto internas quanto globais. O auge da hegemonia americana coincidiu com a era da hiperglobalização, impulsionada pela entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, que promoveu um superciclo de commodities e beneficiou países exportadores como o Brasil. Ao mesmo tempo, gerou desequilíbrios sociais e produtivos profundos: enquanto a classe trabalhadora asiática ascendeu economicamente, a classe média industrial do Ocidente se viu estagnada — uma frustração que acabou alimentando movimentos nacionalistas e populistas, hoje cada vez mais influentes, sustentados pela promessa de “trazer a indústria de volta” e restaurar o poder econômico doméstico.
Há espaço legítimo para políticas de industrialização estratégica, especialmente em setores considerados críticos para a segurança nacional, como energia, tecnologia, defesa e infraestrutura. No entanto, a ideia de uma reindustrialização ampla e irrestrita, sustentada por protecionismo e autossuficiência total, é economicamente inviável e contraproducente. Tentar produzir internamente bens de baixo valor agregado encareceria produtos, reduziria a eficiência produtiva e distorceria cadeias de suprimentos globais que levaram décadas para se consolidar sob o paradigma da integração internacional.
O cenário atual, mais fragmentado e volátil, exige cadeias produtivas mais seguras e resilientes — do ponto de vista logístico, energético e alimentar e cibernético —, campo no qual o Brasil pode desempenhar papel estratégico, como fornecedor confiável de energia, alimentos e insumos críticos. Ainda assim, a estratégia americana recente, baseada em protecionismo, tarifas unilaterais e subsídios, tem minado a credibilidade internacional do dólar e enfraquecido sua posição como principal referência do sistema monetário global.
Para que o dólar perca de forma efetiva seu status de porto seguro global, seria necessário comprometer os pilares institucionais que sustentam sua credibilidade histórica: instituições sólidas, previsibilidade jurídica e respeito irrestrito aos direitos de propriedade. É exatamente nesse ponto que o estilo de governança de Trump tem levantado preocupações crescentes. O uso recorrente de ordens executivas, em detrimento do processo legislativo tradicional, introduz incerteza institucional, enfraquece os mecanismos de freios e contrapesos e reduz a confiança na resiliência democrática americana. Além disso, a combinação de protecionismo econômico, ruptura de alianças históricas, intervencionismo estatal em empresas e instituições e, mais recentemente, sinais de interferência política no Federal Reserve, ampliam os ruídos institucionais e corroem a imagem dos EUA como pilar de estabilidade global.
Esse desgaste institucional já começa a produzir efeitos concretos, reduzindo a capacidade dos EUA de atrair capitais externos no mesmo ritmo do passado — movimento que se intensificou a partir de 2022, quando Washington retirou a Rússia do sistema Swift e congelou suas reservas internacionais, acendendo um alerta em diversos países sobre o risco de dependência excessiva do sistema financeiro americano. Isso não significa, contudo, que os Estados Unidos deixarão de ser um destino privilegiado para o capital global: sua economia permanece a mais dinâmica e inovadora do mundo, e suas empresas continuam entre as mais lucrativas e competitivas do planeta. Como observa Howard Marks, é importante distinguir o “excepcionalismo das companhias americanas” — que segue vivo — do “excepcionalismo da nação”, hoje mais questionado.
Para que o dólar seja efetivamente pressionado, não é necessária uma fuga em massa de capitais: basta uma leve redução nos fluxos financeiros. O país opera
com um déficit em conta corrente estrutural superior a 6% do PIB, o que o torna dependente de entradas constantes de capitais estrangeiros — via compra de Treasuries, ações e outros ativos — para equilibrar suas contas externas. Historicamente, esse fluxo foi mais do que suficiente para sustentar a moeda americana e reforçar seu papel central no sistema financeiro global. Hoje, porém, esse ciclo começa a perder vigor. Mesmo pequenas reduções nas entradas líquidas já provocam efeitos relevantes, dada a necessidade diária de financiamento externo, tornando o dólar mais suscetível às pressões fiscais, geopolíticas e institucionais do próprio país que o emite.
Os novos acordos anunciados por Donald Trump não foram suficientes para dissipar as dúvidas do mercado. Muitos deles não se concretizaram no passado (no primeiro mandato), envolvem prazos excessivamente longos e recursos majoritariamente domésticos, o que reduz seu impacto prático imediato. Assim, não é necessário um colapso de confiança global para pressionar o dólar — uma diversificação gradual de reservas e fluxos de capital para outras moedas e jurisdições já é suficiente para provocar o enfraquecimento da moeda americana.
Trump sempre deixou claro seu apreço por um dólar mais fraco, enxergando nele uma ferramenta para estimular exportações e competitividade industrial. Em certos momentos, chegou a alimentar especulações sobre um “acordo de Mar-a-Lago”, numa alusão ao Acordo Plaza de 1985, que coordenou a desvalorização do dólar entre grandes potências. Com o tempo, contudo, essa hipótese perdeu força. O enfraquecimento atual da moeda americana não decorre de uma política cambial deliberada, mas sim de efeitos colaterais das decisões políticas, fiscais e institucionais que vêm corroendo, de forma gradual, a confiança global no dólar.
Boa parte do interesse dos investidores nos EUA hoje está concentrada nas chamadas “Sete Magníficas” — gigantes de tecnologia que puxam o desempenho das bolsas —, enquanto o restante do mercado apresenta retornos mais fracos que seus pares globais. Essa concentração aumenta a vulnerabilidade relativa dos ativos americanos, sobretudo em meio ao ciclo de cortes de juros em curso, que reduz o diferencial de taxas e estimula a realocação de capitais para outros mercados. Nesse contexto, o ouro vem se consolidando como alternativa direta ao dólar, atraindo fluxos diante das incertezas políticas e fiscais — da paralisação do governo (shutdown) ao desgaste institucional crescente. O metal, que superou US$ 4.100 por onça, tornou-se o reflexo mais visível dessa busca global por proteção e diversificação.
Desde o congelamento das reservas russas em 2022, bancos centrais vêm aumentando suas posições em ouro de forma consistente, buscando reduzir dependência do sistema financeiro americano. A combinação entre um dólar estruturalmente mais fraco, juros em queda e inflação persistentemente elevada cria um ambiente particularmente favorável ao metal, que hoje disputa espaço com os Treasuries e até com a própria moeda americana como principal “porto seguro” global. Além disso, a reorganização das cadeias produtivas em torno da segurança e da regionalização tende a gerar pressões inflacionárias adicionais, reforçando ainda mais o papel do ouro como reserva de valor.
Para o Brasil, esse cenário é relevante. Ciclos prolongados de dólar fraco costumam favorecer os ativos fora dos EUA, impulsionando o desempenho de mercados emergentes e europeus, à medida que os fluxos globais se diversificam. A questão central não é se o dólar perderá abruptamente seu trono, mas se continuará enfrentando uma rotação gradual e consistente de capitais internacionais, ainda que os EUA preservem liderança tecnológica e ganhos de produtividade com a inteligência artificial. Não se trata de um colapso do sistema ou do “fim do império americano”, mas de uma redistribuição progressiva de capital global, que já beneficia diversas praças — inclusive o Brasil.
Mesmo uma pequena fração dos recursos que, na última década, se concentraram quase exclusivamente nos Estados Unidos, se redirecionada para outras regiões, pode prolongar e consolidar o enfraquecimento do dólar. Nesse ambiente, o investidor brasileiro tem múltiplos caminhos estratégicos: o país tende a se beneficiar como “beta global” em ciclos de dólar mais fraco e juros internacionais menores, enquanto a diversificação internacional — em saúde e defesa na Europa, tecnologia e consumo na Ásia, além de ouro e criptoativos (em proporções controladas) — amplia a capacidade de capturar ganhos dessa transição. O tema da desdolarização, por muito tempo tratado como periférico, ganha contornos mais concretos em um mundo cada vez mais multipolar.