O risco oculto dos cortes de juros do Federal Reserve

Os cortes de juros do Federal Reserve voltaram ao centro do debate nos mercados. A leitura dominante é que uma redução da taxa básica poderia sustentar o crescimento, aliviar pressões no setor imobiliário e destravar crédito, num momento em que o mercado aponta desaceleração do mercado de trabalho.
No entanto, há um risco menos discutido: a possibilidade de reacender pressões inflacionárias, em vez de mitigá-las, colocando em xeque justamente o lado mais sensível do mandato do Fed, a estabilidade de preços.
A economia dos Estados Unidos segue mostrando resiliência. O PIB do segundo trimestre cresceu a uma taxa anualizada de 3,8%, acima das estimativas iniciais de 2,8%. Os gastos do consumidor avançaram 2,5% no período (contra 0,6% no primeiro trimestre e acima da projeção de 1,6%). Os PMIs permanecem próximos à zona de expansão (52,4 em serviços e 51,6 na indústria, em setembro), enquanto o desemprego, embora tenha subido 0,1 ponto percentual, ainda se mantém em 4,3%, patamar historicamente baixo. O consumo segue firme, e revisões recentes apontam crescimento acima do previsto anteriormente.
Além disso, dados diários compilados pela Apollo Global Management reforçam esse quadro de solidez: a incerteza em torno da política econômica e comercial voltou a níveis mais normais. Reservas em restaurantes seguem elevadas, o tráfego aéreo doméstico permanece robusto, volumes de visitantes em Las Vegas e ocupação hoteleira continuam sólidos. O varejo também mostra vendas estáveis e até indicadores de lazer — como a lotação da Broadway e o fluxo de turistas à Estátua da Liberdade — permanecem dentro de padrões normais.
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O crescimento do crédito bancário mostra sinais de aceleração, enquanto os pedidos de falência permanecem estáveis. Esses sinais do dia a dia confirmam a resiliência do consumo e indicam que o arrefecimento do mercado de trabalho pode estar mais ligado à menor entrada de imigrantes do que a uma desaceleração generalizada da economia.
Cortes de juros podem pressionar a inflação
Três vetores principais (e dois auxiliares) explicam por que cortes de juros, nesse cenário, poderiam ser pró-inflacionários:
O primeiro são as tarifas comerciais. Seus efeitos demoram a aparecer: empresas entraram no ciclo de aumento tarifário trabalhando com estoques elevados, anteciparam compras e, num ciclo de margens historicamente altas, tiveram espaço para absorver, ao menos temporariamente, parte do choque. Mas, conforme os estoques se esgotam, o custo das tarifas começa a pesar, as margens se comprimem e o repasse de preços tende a ser inevitável e mais intenso.
O segundo vetor é o câmbio. O desempenho recente do dólar amplia os impactos inflacionários: importações ficam mais caras, cadeias globais sofrem repasse e o poder de compra externo dos americanos cai. Dentro dos EUA, produtos domésticos se valorizam e encarecem, retroalimentando a pressão sobre os preços. Mais cortes de juros podem pressionar ainda mais o dólar para baixo, perpetuando esse ciclo.
O terceiro é a política migratória. Desde 2020, mais de 9 milhões de pessoas migraram para os EUA, elevando o crescimento populacional para 1,2% ao ano, o mais alto desde os anos 1990. A maior parte desses imigrantes é jovem e ativa no mercado de trabalho: 78% têm entre 16 e 64 anos e 68% participam da força de trabalho. Esse influxo aumentou temporariamente o “piso” de criação de empregos necessários para manter o desemprego estável — estimado em até 200–230 mil vagas por mês em 2023 e 2024, contra um patamar estrutural de 70–100 mil.
Com a desaceleração recente da migração, esse equilíbrio ainda é incerto, mas certamente está abaixo do nível histórico; segundo estudo recente da Reserva Federal de Dallas, esse nível seria cerca de 30 mil — o que tende a distorcer a leitura tradicional do mercado de trabalho: a criação de menos vagas pode parecer um sinal de desaquecimento, quando, na prática, reflete apenas uma mudança na base laboral.
Um quarto elemento que merece atenção é a transformação tecnológica. O avanço da inteligência artificial tem permitido ganhos expressivos de produtividade em setores como serviços financeiros, tecnologia e manufatura avançada. Isso significa que a economia pode gerar mais PIB com menos contratações líquidas.
Nesse contexto, mesmo que os números de payroll indiquem uma criação de empregos mais modesta, isso não implica fraqueza econômica; ao contrário, pode refletir um ajuste estrutural, em que a produtividade substitui parte da demanda por mão de obra, mantendo crescimento em setores-chave com menor necessidade de novas contratações.
Há ainda um quinto canal, muitas vezes subestimado: o financeiro. Com juros mais baixos, os money market funds, que concentram cerca de US$ 7 trilhões, se tornam menos atrativos. O capital pode migrar para consumo — impulsionado pela elevada propensão a gastar do consumidor americano — ou para ativos de risco, elevando valuations na bolsa e estimulando efeito riqueza. Em ambos os casos, o resultado é maior demanda, não menor.
Para investidores, o recado é claro: cortes de juros podem reacender a inflação, especialmente num cenário sem recessão. Para empresas, custos de produção tendem a subir, seja pelos insumos mais caros, seja pelo trabalho mais oneroso. Para consumidores, o poder de compra enfraquece tanto fora do país, via dólar mais fraco, quanto internamente, via preços mais altos.
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O dilema do Fed
Ainda assim, há argumentos que sustentam a posição contrária — de que os cortes são justificados. A criação líquida de empregos desacelerou fortemente: em agosto, foram apenas 22 mil novas vagas, e nos últimos três meses a média ficou em 29 mil por mês, contra 82 mil no mesmo período de 2024. O desemprego atingiu 4,3%, o maior nível em quase quatro anos. Além disso, revisões do Bureau of Labor Statistics mostraram que o crescimento do emprego nos últimos 18 meses foi mais fraco do que se pensava inicialmente. Esse esfriamento levou o Fed a cortar juros em setembro, em um movimento descrito por Jerome Powell como ajuste de “gestão de risco”.
O dilema do Fed é claro: cortar juros cedo demais pode reacender a inflação, enquanto adiar o corte pode aprofundar o desaquecimento do mercado de trabalho e comprometer a retomada da economia. Essa é a forte dicotomia da política decisória do banco central americano, especialmente diante do mandato dual do Fed: estabilidade de preços e máximo emprego.
A economia americana hoje apresenta uma dupla face: estruturalmente robusta, sustentada pelo consumo e pela produtividade crescente impulsionada pela IA; mas conjunturalmente mais frágil, com sinais de perda de tração no mercado de trabalho e incertezas provocadas pela política tarifária e tensões geopolíticas.
Nesse contexto, a política monetária exige calibragem precisa, nem tão restritiva a ponto de agravar o desemprego, nem tão frouxa que volte a pressionar a inflação. Com o PIB crescendo 3,8% e a inflação em 2,9% — ainda distante da meta de 2% e em trajetória ascendente —, torna-se difícil sustentar uma defesa consistente por novos cortes de juros, especialmente num mercado que aposta em cerca de cinco cortes de 0,25 ponto percentual até o final de 2026.