Quando o Plano Clima pune quem cumpre a lei e reduz credibilidade do Brasil
O novo Plano Clima brasileiro, peça central da NDC de 2024, busca reposicionar o país como líder global em mitigação baseada em natureza. O documento propõe eliminar o desmatamento ilegal e compensar as emissões do desmatamento legal dentro do setor de uso da terra e florestas (LULUCF), tratando o tema como parte da agenda agropecuária e florestal.
Mas a boa intenção esbarra em inconsistências: a metodologia adota abordagem que associa emissões provenientes de desmatamento ilegal ao balanço do setor agropecuário formal e enfraquece o próprio Código Florestal, a norma que sustenta a reputação ambiental do Brasil há mais de uma década.
A inconsistência não é apenas conceitual, mas produz implicações jurídicas e diplomáticas. O Código Florestal, ao impor a manutenção obrigatória de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs) em propriedades privadas, é a lei que distingue produção lícita de desmatamento ilegal.
É também o principal instrumento que o país poderia utilizar para reivindicar “adicionalidade”, ou seja, que os resultados de mitigação obtidos com o cumprimento do Código Florestal possam ser contabilizados e, eventualmente, autorizados como Internationally Transferred Mitigation Outcomes (ITMOs) no âmbito do Artigo 6 do Acordo de Paris.
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Para isso, porém, é preciso provar que a lei é efetiva, tem cumprimento mensurável e está separada de atividades ilícitas. Ao misturar o ilícito (desmatamento ilegal) com o lícito (produção agropecuária regulada), o Plano Clima confunde cumprimento com violação da lei e enfraquece a demonstração da efetividade do Código Florestal como instrumento climático.
Em outras palavras, o Brasil prejudica sua própria capacidade de converter cumprimento legal em ativo climático — enfraquecendo o argumento de adicionalidade que poderia colocá-lo na vanguarda do Artigo 6 do Acordo de Paris.
Essa confusão compromete a coerência da estratégia de comunicação internacional adotada pelo Brasil nas negociações climáticas desde 2023. O Brasil recuperava o papel de “superpotência ambiental”, baseado em duas forças singulares: a legislação florestal mais rigorosa do mundo e a capacidade de combinar comando e controle com instrumentos de mercado, como o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), o Programa de Regularização Ambiental (PRA) e os mecanismos de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).
Entretanto, o Plano Clima atual inverte essa lógica. De um líder com lei robusta e em cumprimento, o país pode ser percebido como jurisdição de governança fraca, em que o setor agro é tratado como emissor estrutural e não como parte da solução climática.
Desalinhamento do Plano Clima com negociações de adicionalidade do artigo 6 no Acordo de Paris
Essa inversão também pode ter custos concretos. Essa limitação reduz a credibilidade do Brasil nas negociações do Artigo 6 e dificulta o enquadramento do Código Florestal no mecanismo do Art. 6.4, previsto no § 6.1(25) do Standard A6.4-SBM015-A11, que poderá permitir reconhecer leis nacionais como instrumentos de mitigação elegíveis.
Com isso, o país perde eventualmente a oportunidade de transformar o cumprimento da legislação florestal em ativo climático e consolidar sua liderança em adicionalidade para programas de pagamento por serviços ambientais e ITMOs atrelados ao Acordo de Paris.
Ao invés de transformar o cumprimento da lei florestal em ativo climático, o país reforça a percepção de que não controla o crime ambiental e não separa o agro formal da ilegalidade fundiária e florestal.
O resultado é paradoxal: o Brasil, que detém a lei florestal mais ambiciosa do planeta, passa a ter dificuldades em provar que essa mesma lei é efetiva — justamente porque o seu próprio Plano Nacional de Clima diluiu a fronteira entre o que é cumprimento e o que é crime.
Inconsistências do Plano Clima com discussões de agro sustentável e sistemas agroalimentares no escopo da Plataforma Sharm el-Sheikh
A consistência entre o novo Plano Nacional sobre Mudança do Clima e a agenda internacional para sistemas agroalimentares sustentáveis também é um elemento determinante para a credibilidade do Brasil nas negociações da COP30. A atual metodologia de contabilização das emissões no setor de uso da terra, que inclui o desmatamento ilegal nas estimativas do setor agropecuário, tende a gerar sobreposição entre atividades produtivas reguladas e ilícitas.
Essa abordagem reduz a clareza da contribuição específica da agricultura formal para a mitigação e dificulta a demonstração da efetividade do Código Florestal como instrumento climático.
Tal delimitação é essencial para que o país comprove, no âmbito do Sharm el-Sheikh Joint Work e dos mecanismos do Artigo 6 do Acordo de Paris, a adicionalidade resultante do cumprimento da legislação ambiental e da adoção de práticas produtivas de baixa emissão.
O alinhamento técnico entre o Plano Clima e a Plataforma Sharm el-Sheikh é, portanto, condição necessária para que o Brasil integre de forma coerente sua política doméstica à agenda internacional de transformação dos sistemas agroalimentares e volte a apresentar a agricultura tropical como ativo climático — e não como passivo contábil.
Realinhamento
O caminho correto seria o oposto: reclassificar o desmatamento ilegal como emissão de origem não econômica, vinculada à esfera de governança estatal, e preservar o setor agro e o Código Florestal como pilares de mitigação legítima e rastreável. Isso permitiria formalizar a integração entre a lei florestal e a NDC, consolidando o modelo de adicionalidade brasileira e reforçando o papel do país como exemplo de como unir soberania ambiental e integridade climática – usar APPs e RLs como elegíveis de projetos de carbono e PSA no escopo internacional.
Contabilizar as emissões de desmatamento ilegal no agro formal pode ser politicamente conveniente, mas juridicamente prejudicial. Enfraquece o Código Florestal, desorganiza a contabilidade climática e reduz o poder de barganha do Brasil nas mesas de negociação do Acordo de Paris. Para liderar a COP 30 com credibilidade, inclusive para discussões de financiamento climático, o país precisa mostrar que cumprir a lei é o ativo climático brasileiro — não o seu passivo.