EUA vs China: Mercado respira, mas incerteza segue; o que esperar daqui para frente?

Nos Estados Unidos, os mercados acionários voltaram a ensaiar um movimento de recuperação, embalados por sinais de que a Casa Branca estaria, ao menos por ora, disposta a moderar o tom na escalada comercial com a China.
A aparente mudança de postura veio acompanhada por um Donald Trump menos incendiário do que o habitual — ou, ao menos, interessado em parecer assim.
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Ainda que tenha renovado suas críticas ao Federal Reserve por não cortar os juros com mais celeridade, o presidente americano afirmou que não pretende demitir Jerome Powell, atual comandante do banco central.
A declaração soou como mais um dos tradicionais recuos táticos de Trump: ameaça de manhã, desdiz à tarde — e o mercado, já treinado nesse padrão de improviso e contenção, agarra-se a qualquer sinal de trégua como se fosse um armistício.
O alívio também veio pelas mãos do secretário do Tesouro, Scott Bessent, que afirmou esperar uma redução nas tensões comerciais entre EUA e China.
A possibilidade de Washington suavizar sua retórica, até então quase hostil, caiu como bálsamo sobre investidores ainda atordoados pela volatilidade recente.
A ideia de desmantelar, de forma abrupta, os laços entre as duas maiores economias do planeta não apenas beira o surrealismo — ou autossabotagem.
O próprio Bessent tratou de colocar panos quentes: o objetivo do governo americano, segundo ele, não é a ruptura comercial, mas uma recalibração pragmática das relações — algo, quem sabe, imposto pela própria inviabilidade do cenário atual.
Pode até ser uma dose tardia de bom senso, disfarçada de realismo estratégico. Ainda assim, o simples abandono, ainda que temporário, da retórica destrutiva já bastou para restaurar algum fôlego aos ativos de risco.
A dúvida que paira, contudo, continua a mesma: estamos diante de uma mudança de regime — em que o protecionismo agressivo se torna o novo normal — ou apenas assistindo a mais um episódio da diplomacia performática que virou marca registrada da política externa trumpista?
O tempo dirá. Mas o mercado, impaciente por definição, já escolheu celebrar qualquer pausa como se fosse o fim do ruído — mesmo quando tudo indica apenas mais um intervalo.
Trump iniciou sua guerra comercial sob o pressuposto de que travaria uma disputa de fluxo — uma correção de balança comercial aqui, um ajuste tarifário ali.
Mas, no meio do caminho, trocou um problema de déficit por uma crise de crescimento. E, pior: entregou de brinde uma erosão de confiança institucional que dificilmente será revertida no curto prazo.
Nesse contexto, os recentes recuos da Casa Branca soam menos como mudanças de rumo e mais como tentativas apressadas de contenção de danos.
Porque, no fim das contas, a destruição reputacional é sempre mais veloz que sua reconstrução — especialmente quando se trata da credibilidade dos Estados Unidos no papel de fiador do sistema econômico global.
Desde Bretton Woods, os EUA não foram apenas a maior economia do mundo — foram a âncora institucional da ordem internacional.
O país garantiu a estabilidade dos mercados financeiros, promoveu o livre comércio e atuou como árbitro da previsibilidade geopolítica. Tudo isso sustentado por uma lógica de confiança e um compromisso com regras claras.
E é exatamente isso que está em jogo agora. A tarifa de 145% contra a China, por mais impactante que pareça, não é o verdadeiro epicentro do abalo.
O problema maior é simbólico: o que acontece quando o arquiteto da ordem decide demolir os próprios alicerces? Quando o fiador institucional do sistema passa a agir como incendiário, o risco deixa de ser pontual — torna-se sistêmico.
A imprevisibilidade é, hoje, o principal corrosivo do ambiente econômico global.
O sobe-e-desce tarifário, os anúncios abruptos seguidos de recuos parciais, as ameaças substituídas por exceções e depois re-revertidas — tudo isso compõe uma política comercial que não assusta apenas por seu viés protecionista, mas por seu caráter errático.
Tarifa elevada ainda pode ser precificada; já a incerteza institucional desorganiza cadeias produtivas, paralisa decisões de investimento e mina a confiança num país cuja vantagem competitiva era a previsibilidade.
Mais do que redesenhar as regras do jogo, Trump parece empenhado em forçar uma dissociação entre os Estados Unidos e parte relevante da economia global.
Trata-se de um decoupling compulsório, motivado por déficits bilaterais, embalado em retórica nacionalista e utilizado, de forma enviesada, para justificar cortes de impostos e rearranjos fiscais. O custo disso — econômico, institucional e simbólico — já começou a ser cobrado.
O problema central? Trata-se de uma visão romântica e anacrônica da economia americana. Não estamos mais em 1950. Os Estados Unidos não voltarão a ser o país das fábricas de sapatos, torradeiras ou camisetas.
A realidade logística, econômica e social de 2025 é outra, e qualquer tentativa de regressão industrial esbarra em três obstáculos intransponíveis: falta de escala, falta de competitividade e, não menos relevante, falta de mão de obra disposta a ocupar postos de baixa qualificação em condições industriais do século passado.
É claro que há espaço — e até urgência — para repensar as cadeias globais de suprimentos, especialmente em setores críticos como tecnologia, semicondutores e defesa.
Políticas industriais bem desenhadas, com foco em soberania produtiva e inovação estratégica, fazem todo sentido. Mas o que vemos hoje está longe disso.
O que se apresenta é um tarifaço desorganizado, mal calibrado e frequentemente contraproducente — mais próximo de uma birra protecionista do que de um plano industrial coerente.
Esse tipo de política não estimula uma reindustrialização verdadeira. Ao contrário: tende a gerar inflação, desorganização produtiva e isolamento.
Se há um norte que deveria guiar a estratégia comercial americana, ele certamente não passa por sobretaxar aleatoriamente qualquer item que cruze suas fronteiras.
O exemplo de acerto, aliás, já existe — e envolve tecnologia: a Nvidia anunciou a fabricação de supercomputadores de IA totalmente projetados e montados nos EUA.
Esse sim é o tipo de iniciativa que justifica a reindustrialização: inovação de ponta, valor agregado elevado e relevância geopolítica.
A estratégia de Trump, no entanto, tem outra lógica: tornar produtos importados artificialmente caros, na esperança de empurrar os consumidores para produtos “Made in USA” — como se o problema de competitividade da indústria americana fosse apenas uma questão de preço relativo.
O resultado prático, como era de se esperar, é um tiro no pé: penaliza as famílias com preços altos, encarece insumos para as empresas locais, reduz a variedade de bens disponíveis e ainda dificulta a vida de quem se pretende ajudar — o industrial doméstico.
Sim, havia motivos legítimos para os EUA revisitarem sua posição no comércio internacional e enfrentarem práticas distorcivas.
Mas o método escolhido foi o pior possível.
A escalada tarifária unilateral, conduzida sem coordenação institucional, sem planejamento estratégico e com completa ausência de diplomacia, tem sido até aqui mais destrutiva do que transformadora. Em vez de redesenhar o tabuleiro global, Washington parece decidido a embaralhar todas as peças — sem se dar ao trabalho de pensar no próximo movimento.
Do outro lado do Pacífico, a China continua encenando seu habitual teatro diplomático: sinaliza disposição para negociar, mas apenas sob uma condição inegociável — não aceitará acordos firmados sob coação.
O recado, transmitido com frieza pelo Ministério do Comércio, foi direto: qualquer tentativa de acomodação “às custas da China” encontrará resistência firme e organizada.
O simbolismo desse impasse é ainda maior porque ele se desenrola justamente durante as reuniões de primavera do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, em Washington — encontros que, em teoria, deveriam reforçar o compromisso global com cooperação institucional e estabilidade econômica.
Como se não bastasse, o FMI aproveitou o palco para rebaixar suas projeções de crescimento para a economia americana.
No Panorama Econômico Mundial a estimativa de crescimento do PIB dos EUA em 2025 caiu de 2,7% para 1,8%. A justificativa é clara e direta: as políticas comerciais da Casa Branca, que têm produzido mais ruído do que resultado, mais incerteza do que solução.
Segundo o próprio Fundo, o pacote tarifário anunciado com estardalhaço no Rose Garden, no dia 2 de abril, já configura, por si só, um choque suficientemente severo para comprometer a trajetória de crescimento americano.
Embora ainda não projete formalmente uma recessão, o FMI elevou a probabilidade de sua ocorrência de 25% para 40% — um alerta que, mesmo sem ser catastrofista, carrega peso simbólico inegável.
O panorama global tampouco anima. A projeção de crescimento do PIB mundial em 2025 foi revisada de 3,3% para 2,8% — o pior desempenho desde o tombo da Covid e o segundo mais fraco desde a crise de 2009.
O mais irônico, porém, é que boa parte dessa deterioração poderia ser evitada com medidas minimamente coordenadas: uma trégua tarifária, a revisão de barreiras não tarifárias, e o início de uma conversa séria sobre política industrial moderna.
Mas, em vez disso, o mundo segue pagando a conta de uma estratégia comercial mal desenhada: cheia de ruído, pouca direção, impacto difuso.
No fundo, não se trata de um plano de reposicionamento estratégico, mas de um improviso barulhento com consequências sistêmicas.
O governo americano, em vez de liderar com racionalidade, prefere testar os limites da credibilidade internacional com anúncios de tarifas — e com recuos tão frequentes quanto as próprias bravatas.
A retórica é tão volátil que o simples fato de uma ameaça ser retirada já é suficiente para restaurar, ainda que momentaneamente, o apetite.
É pouco. E é perigoso. O mundo não precisa de fogos de artifício econômicos embalados em nacionalismo apressado.
Precisa de previsibilidade, diplomacia e coerência. A postergação de um colapso não é o mesmo que sua prevenção — e se Washington não reencontrar o eixo, a conta dessa instabilidade não será exclusiva dos EUA, mas de todos os que ainda tentam sustentar a ordem global.
Dito isso, sejamos justos: há um cenário em que a atual bagunça evolui para algo mais racional. Se a Casa Branca abandonar o tarifaço indiscriminado e focar em setores verdadeiramente estratégicos — como tecnologia, semicondutores, defesa e infraestrutura crítica — pode, sim, surgir uma janela real de oportunidades.
Mas para isso, Trump teria que fazer algo raro: recuar de forma coordenada, sentar à mesa, rever o tom e — ainda que não admita — corrigir a rota traçada no início de seu segundo mandato.
Claro, tudo isso mantendo as aparências, porque sabemos com quem estamos lidando. A única dúvida que resta é se o mundo vai comprar essa reviravolta silenciosa…