Thinking outside the box

EUA vs China: Mercado respira, mas incerteza segue; o que esperar daqui para frente?

24 abr 2025, 18:32 - atualizado em 24 abr 2025, 18:48
eua vs china
'A possibilidade de Washington suavizar sua retórica, até então quase hostil, caiu como bálsamo', diz o analista (Imagem: REUTERS/Adriano Machado)

Nos Estados Unidos, os mercados acionários voltaram a ensaiar um movimento de recuperação, embalados por sinais de que a Casa Branca estaria, ao menos por ora, disposta a moderar o tom na escalada comercial com a China.

A aparente mudança de postura veio acompanhada por um Donald Trump menos incendiário do que o habitual — ou, ao menos, interessado em parecer assim.

Ainda que tenha renovado suas críticas ao Federal Reserve por não cortar os juros com mais celeridade, o presidente americano afirmou que não pretende demitir Jerome Powell, atual comandante do banco central.

A declaração soou como mais um dos tradicionais recuos táticos de Trump: ameaça de manhã, desdiz à tarde — e o mercado, já treinado nesse padrão de improviso e contenção, agarra-se a qualquer sinal de trégua como se fosse um armistício.

O alívio também veio pelas mãos do secretário do Tesouro, Scott Bessent, que afirmou esperar uma redução nas tensões comerciais entre EUA e China.

A possibilidade de Washington suavizar sua retórica, até então quase hostil, caiu como bálsamo sobre investidores ainda atordoados pela volatilidade recente.

A ideia de desmantelar, de forma abrupta, os laços entre as duas maiores economias do planeta não apenas beira o surrealismo — ou autossabotagem.

O próprio Bessent tratou de colocar panos quentes: o objetivo do governo americano, segundo ele, não é a ruptura comercial, mas uma recalibração pragmática das relações — algo, quem sabe, imposto pela própria inviabilidade do cenário atual.

Pode até ser uma dose tardia de bom senso, disfarçada de realismo estratégico. Ainda assim, o simples abandono, ainda que temporário, da retórica destrutiva já bastou para restaurar algum fôlego aos ativos de risco.

A dúvida que paira, contudo, continua a mesma: estamos diante de uma mudança de regime — em que o protecionismo agressivo se torna o novo normal — ou apenas assistindo a mais um episódio da diplomacia performática que virou marca registrada da política externa trumpista?

O tempo dirá. Mas o mercado, impaciente por definição, já escolheu celebrar qualquer pausa como se fosse o fim do ruído — mesmo quando tudo indica apenas mais um intervalo.

Trump iniciou sua guerra comercial sob o pressuposto de que travaria uma disputa de fluxo — uma correção de balança comercial aqui, um ajuste tarifário ali.

Mas, no meio do caminho, trocou um problema de déficit por uma crise de crescimento. E, pior: entregou de brinde uma erosão de confiança institucional que dificilmente será revertida no curto prazo.

Nesse contexto, os recentes recuos da Casa Branca soam menos como mudanças de rumo e mais como tentativas apressadas de contenção de danos.

Porque, no fim das contas, a destruição reputacional é sempre mais veloz que sua reconstrução — especialmente quando se trata da credibilidade dos Estados Unidos no papel de fiador do sistema econômico global.

Desde Bretton Woods, os EUA não foram apenas a maior economia do mundo — foram a âncora institucional da ordem internacional.

O país garantiu a estabilidade dos mercados financeiros, promoveu o livre comércio e atuou como árbitro da previsibilidade geopolítica. Tudo isso sustentado por uma lógica de confiança e um compromisso com regras claras.

E é exatamente isso que está em jogo agora. A tarifa de 145% contra a China, por mais impactante que pareça, não é o verdadeiro epicentro do abalo.

O problema maior é simbólico: o que acontece quando o arquiteto da ordem decide demolir os próprios alicerces? Quando o fiador institucional do sistema passa a agir como incendiário, o risco deixa de ser pontual — torna-se sistêmico.

A imprevisibilidade é, hoje, o principal corrosivo do ambiente econômico global.

O sobe-e-desce tarifário, os anúncios abruptos seguidos de recuos parciais, as ameaças substituídas por exceções e depois re-revertidas — tudo isso compõe uma política comercial que não assusta apenas por seu viés protecionista, mas por seu caráter errático.

Tarifa elevada ainda pode ser precificada; já a incerteza institucional desorganiza cadeias produtivas, paralisa decisões de investimento e mina a confiança num país cuja vantagem competitiva era a previsibilidade.

Mais do que redesenhar as regras do jogo, Trump parece empenhado em forçar uma dissociação entre os Estados Unidos e parte relevante da economia global.

Trata-se de um decoupling compulsório, motivado por déficits bilaterais, embalado em retórica nacionalista e utilizado, de forma enviesada, para justificar cortes de impostos e rearranjos fiscais. O custo disso — econômico, institucional e simbólico — já começou a ser cobrado.

O problema central? Trata-se de uma visão romântica e anacrônica da economia americana. Não estamos mais em 1950. Os Estados Unidos não voltarão a ser o país das fábricas de sapatos, torradeiras ou camisetas.

A realidade logística, econômica e social de 2025 é outra, e qualquer tentativa de regressão industrial esbarra em três obstáculos intransponíveis: falta de escala, falta de competitividade e, não menos relevante, falta de mão de obra disposta a ocupar postos de baixa qualificação em condições industriais do século passado.

É claro que há espaço — e até urgência — para repensar as cadeias globais de suprimentos, especialmente em setores críticos como tecnologia, semicondutores e defesa.

Políticas industriais bem desenhadas, com foco em soberania produtiva e inovação estratégica, fazem todo sentido. Mas o que vemos hoje está longe disso.

O que se apresenta é um tarifaço desorganizado, mal calibrado e frequentemente contraproducente — mais próximo de uma birra protecionista do que de um plano industrial coerente.

Esse tipo de política não estimula uma reindustrialização verdadeira. Ao contrário: tende a gerar inflação, desorganização produtiva e isolamento.

Se há um norte que deveria guiar a estratégia comercial americana, ele certamente não passa por sobretaxar aleatoriamente qualquer item que cruze suas fronteiras.

O exemplo de acerto, aliás, já existe — e envolve tecnologia: a Nvidia anunciou a fabricação de supercomputadores de IA totalmente projetados e montados nos EUA.

Esse sim é o tipo de iniciativa que justifica a reindustrialização: inovação de ponta, valor agregado elevado e relevância geopolítica.

A estratégia de Trump, no entanto, tem outra lógica: tornar produtos importados artificialmente caros, na esperança de empurrar os consumidores para produtos “Made in USA” — como se o problema de competitividade da indústria americana fosse apenas uma questão de preço relativo.

O resultado prático, como era de se esperar, é um tiro no pé: penaliza as famílias com preços altos, encarece insumos para as empresas locais, reduz a variedade de bens disponíveis e ainda dificulta a vida de quem se pretende ajudar — o industrial doméstico.

Sim, havia motivos legítimos para os EUA revisitarem sua posição no comércio internacional e enfrentarem práticas distorcivas.

Mas o método escolhido foi o pior possível.

A escalada tarifária unilateral, conduzida sem coordenação institucional, sem planejamento estratégico e com completa ausência de diplomacia, tem sido até aqui mais destrutiva do que transformadora. Em vez de redesenhar o tabuleiro global, Washington parece decidido a embaralhar todas as peças — sem se dar ao trabalho de pensar no próximo movimento.

Do outro lado do Pacífico, a China continua encenando seu habitual teatro diplomático: sinaliza disposição para negociar, mas apenas sob uma condição inegociável — não aceitará acordos firmados sob coação.

O recado, transmitido com frieza pelo Ministério do Comércio, foi direto: qualquer tentativa de acomodação “às custas da China” encontrará resistência firme e organizada.

O simbolismo desse impasse é ainda maior porque ele se desenrola justamente durante as reuniões de primavera do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, em Washington — encontros que, em teoria, deveriam reforçar o compromisso global com cooperação institucional e estabilidade econômica. 

Como se não bastasse, o FMI aproveitou o palco para rebaixar suas projeções de crescimento para a economia americana.

No Panorama Econômico Mundial a estimativa de crescimento do PIB dos EUA em 2025 caiu de 2,7% para 1,8%. A justificativa é clara e direta: as políticas comerciais da Casa Branca, que têm produzido mais ruído do que resultado, mais incerteza do que solução.

Segundo o próprio Fundo, o pacote tarifário anunciado com estardalhaço no Rose Garden, no dia 2 de abril, já configura, por si só, um choque suficientemente severo para comprometer a trajetória de crescimento americano.

Embora ainda não projete formalmente uma recessão, o FMI elevou a probabilidade de sua ocorrência de 25% para 40% — um alerta que, mesmo sem ser catastrofista, carrega peso simbólico inegável.

O panorama global tampouco anima. A projeção de crescimento do PIB mundial em 2025 foi revisada de 3,3% para 2,8% — o pior desempenho desde o tombo da Covid e o segundo mais fraco desde a crise de 2009.

O mais irônico, porém, é que boa parte dessa deterioração poderia ser evitada com medidas minimamente coordenadas: uma trégua tarifária, a revisão de barreiras não tarifárias, e o início de uma conversa séria sobre política industrial moderna.

Mas, em vez disso, o mundo segue pagando a conta de uma estratégia comercial mal desenhada: cheia de ruído, pouca direção, impacto difuso.

No fundo, não se trata de um plano de reposicionamento estratégico, mas de um improviso barulhento com consequências sistêmicas.

O governo americano, em vez de liderar com racionalidade, prefere testar os limites da credibilidade internacional com anúncios de tarifas — e com recuos tão frequentes quanto as próprias bravatas.

A retórica é tão volátil que o simples fato de uma ameaça ser retirada já é suficiente para restaurar, ainda que momentaneamente, o apetite.

É pouco. E é perigoso. O mundo não precisa de fogos de artifício econômicos embalados em nacionalismo apressado.

Precisa de previsibilidade, diplomacia e coerência. A postergação de um colapso não é o mesmo que sua prevenção — e se Washington não reencontrar o eixo, a conta dessa instabilidade não será exclusiva dos EUA, mas de todos os que ainda tentam sustentar a ordem global.

Dito isso, sejamos justos: há um cenário em que a atual bagunça evolui para algo mais racional. Se a Casa Branca abandonar o tarifaço indiscriminado e focar em setores verdadeiramente estratégicos — como tecnologia, semicondutores, defesa e infraestrutura crítica — pode, sim, surgir uma janela real de oportunidades.

Mas para isso, Trump teria que fazer algo raro: recuar de forma coordenada, sentar à mesa, rever o tom e — ainda que não admita — corrigir a rota traçada no início de seu segundo mandato.

Claro, tudo isso mantendo as aparências, porque sabemos com quem estamos lidando. A única dúvida que resta é se o mundo vai comprar essa reviravolta silenciosa…

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Economista e especialista em investimentos da Empiricus
Estudou finanças na University of Regina, no Canadá, tendo concluído lá parte de sua graduação em economia pela PUC. Pós-graduado no Programa Avançado em Finanças do Insper, trabalhou em duas das maiores casas de análise de investimentos da América Latina, além de ter feito parte de uma boutique voltada para fusões e aquisições, na área de modelagem financeira e pesquisa. Hoje faz parte no time de analistas da Empiricus, participando de séries como Palavra do Estrategista e Double Income, além do programa Empiricus Private junto do Felipe Miranda, estrategista-chefe e um dos fundadores da casa. É analista CNPI e especialista em investimentos CEA.
matheus.spiess@moneytimes.com.br
Estudou finanças na University of Regina, no Canadá, tendo concluído lá parte de sua graduação em economia pela PUC. Pós-graduado no Programa Avançado em Finanças do Insper, trabalhou em duas das maiores casas de análise de investimentos da América Latina, além de ter feito parte de uma boutique voltada para fusões e aquisições, na área de modelagem financeira e pesquisa. Hoje faz parte no time de analistas da Empiricus, participando de séries como Palavra do Estrategista e Double Income, além do programa Empiricus Private junto do Felipe Miranda, estrategista-chefe e um dos fundadores da casa. É analista CNPI e especialista em investimentos CEA.