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A recuperação judicial do produtor, a essencialidade dos bens do empreendedor do campo e o tumulto do mercado

17 abr 2024, 15:05 - atualizado em 17 abr 2024, 15:09
agronegócio recuperação judicial
André Passos debate sobre a essencialidade dos produtos do agronegócio integrantes da cesta básica e os barulhos do mercado (Imagem: Pixabay/TheOtherKev)

Em nossa última coluna, tratamos da questão da essencialidade dos produtos agropecuários integrantes da cesta básica e como funcionam os critérios de informação das políticas de tributação na cadeia do agronegócio, tratando do tema à luz da reforma tributária e da sustentabilidade dos negócios no campo diante das políticas de estado voltadas para a produção de alimentos básicos.

Agora, retornamos a analisar a questão da “essencialidade”, até com algum pesar, diríamos; em função de uma “barulheira” que entendemos inadequada em relação ao quanto tratado no Projeto de Lei nº. 3/2024 (PL nº. 3/24” ou “PL) em trâmite no Congresso Nacional e que visa atualizar a Lei nº 11.101/2005 (Lei de Falências e Recuperação Judicial – LRJ).

Tramitação e Alcance das Alterações do PL nº. 3/24

E por que entendemos importante voltar ao tema da Recuperação Judicial do Produtor Rural nesse contexto? Porque o Poder Executivo, resolveu – na esteira de muitas discussões em torno da questão, até certo ponto enviesadas – dar andamento ao projeto de lei em questão que, após algumas modificações propostas durante a sua tramitação, foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 26 de março de 2024.

O PL nº. 3/24 ainda carece de aprovação no Senado Federal e respectiva sanção presidencial para que passem a valer as alterações previstas na Lei nº 11.101/2005, porém entendemos pertinente já debatê-lo nesse espaço muito por conta do tal do “barulho” que vem sendo criado em torno de um dos dispositivos, sob a alegação de que afetaria o financiamento privado ao agronegócio, dentre outras colocações um tanto enviesadas em nossa visão.

E até porque a tramitação célere do projeto teve como pano de fundo uma tentativa de, supostamente, buscar garantir a celeridade e desburocratização do processo de recuperação judicial das empresas e produtores rurais, bem como se buscar um processo menos burocrático e oneroso de liquidação de dívidas e ativos do falido em eventual processo falimentar.

Como importa bastante para o financiamento do agronegócio brasileiro e respectiva gestão de riscos jurídicos e de crédito, a celeuma em torno dessa disposição veiculada pelo PL nº. 3/24 tem girado em torno de uma alteração fora proposta em relação à redação originária da norma contida no parágrafo 3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/2005, conforme demonstra o quadro comparativo abaixo:

recuperação judicial

A par dessa modificação, as demais alterações previstas no PL se voltaram quase que exclusivamente aos procedimentos da falência, liquidação de ativos arrecadados, responsabilidades e geras para gestão dos administradores judiciais, dentre outras questões mais procedimentais.

Com isso, em relação ao dispositivo acima mencionado, objeto de nossa análise, podemos dizer de antemão que, basicamente, ratifica a redação originária da LRJ de 2.005, a que está vigente hoje conforme podemos atestar visualmente acima, tratando de utilizar o termo “ativos” em adição aos “bens de capital” para definir a questão da “essencialidade” para o produtor rural ou empresa endividados, visando a continuidade em operação no(a) recuperando(a) desses bens “essenciais” eventualmente dados em garantia de financiamentos, em face de processos de cobrança de credores.

Esqueceram de mim?

É muito claro, numa simples leitura, que a linguagem da lei vigente é muito similar à que fora atualizada pelo PL nº. 3/24. Talvez a adição de um termo “ativos” à expressão “bens de capital” já existente poderia representar a inserção de novos bens “essenciais” no rol de proteção jurídica aos devedores. Porém, mesmo que assim se entendesse – já que são sinônimos, praticamente os termos – quais ativos seriam esses?

Ora, se considerarmos o cotejo dessa disposição, com a previsão contida no art. 42 da chamada “Lei do Agro”, a Lei n. 13.986/20, onde foi incluído um parágrafo único no art. 5º da Lei nº 8.929/94, a Lei da CPR”, para prever que a essencialidade dos bens móveis e imóveis dados em garantia fiduciária à atividade empresarial do produtor rural, já podemos ter uma pista, já que a condição da “essencialidade” dos bens e/ou ativos empenhados em uma CPR deverá constar expressamente da cédula, na hipótese dessa “declaração de essencialidade”, a partir do momento da emissão do título e constituição da respectiva garantia.

Assim, podemos dizer que o sistema introduzido com o dever do empresário e/ou produtor rural declarar a essencialidade dos bens e/ou “ativos” (na nova dicção do PL), dados em garantia fiduciária, a contrário senso, denota que a não indicação cedular da essencialidade de um determinado ativo ou bem integrante do patrimônio do devedor ou recuperando(a), na emissão de uma CPR qualquer, retiraria do bem e/ou ativo a condição da essencialidade.

Diante dessa disposição legal, clara e cristalina, existente em nossa legislação abril de 2020, nos salta aos olhos o quanto de “espuma” se anda fazendo no “mercado” em torno do tema, promovendo-se “congressos”, “ciclos de debates” e tantas outras “rodinhas” para discutir um assunto que no PL pouco se inova ou se modifica em relação à linguagem atual da LRJ.

E mesmo se o faz, admitamos a visão da mãe do “Kevin” personagem do famoso filme a que nos referimos nesse subtítulo, a questão da essencialidade em si não está adstrita ao juízo exclusivo do julgador de um eventual processo de recuperação judicial de produtor rural, como querem fazer crer aos incautos, mas à declaração inequívoca do empresário ou produtor rural de que aquele bem dado em garantia é de fato “essencial” à sua atividade empresarial e/ou agropecuária.

É dizer que tal informação (essencialidade ou não de bem – ou ativo – empenhado em CPR) já estaria à disposição do analista de crédito ou do intérprete da lei, desde o nascimento da obrigação representada no título de dívida a que se refere a operação que se visa estruturar e/ou envolver em um processo de recuperação judicial. Desde o início da operação ou contratação de uma dívida  já saberíamos se a mesma poderia ou não ser passível de renegociação judicial via processo de recuperação judicial do produtor rural. 

Disposição legal envolvendo a Cédula de Produto Rural CPR- física e sua extraconcursalidade para fins de recuperação judicial

Além disso, cabe ainda distinguirmos aqui qual a modalidade/tipo de Cédula de Produto Rural (“CPR”), que é um dos títulos de crédito mais utilizados no mercado privado de financiamento do agronegócio, sobre o qual já falamos inúmeras vezes em nossa coluna acerca de sua importância para o financiamento do agronegócio brasileiro, criada com base na Lei nº 8.929/1994 (“Lei da CPR”), mais utilizadas nas modalidades “física” e “financeira”.

A CPR física pode ser caracterizada como um título de crédito por meio do qual o produtor rural se compromete, em um documento (cártula ou já produzido em formato escritural/ou eletrônico), a entregar produtos rurais em um momento futuro, recebendo, desde já, o pagamento, a contraprestação ou a devida contrapartida por essa promessa de entrega futura de produtos agropecuários objeto do título. No dia do vencimento, o produtor rural entregará ao credor os produtos rurais prometidos (artigo 1º da Lei nº 8.929/1994), tudo na forma prevista na respectiva cédula.

Além disso, como temos insistido em posicionar – inclusive nessa coluna, que pretende tentar desfazer um pouco da “marola” que muitos insistem em fomentar no mercado, muitas vezes a troco de visibilidade a qualquer custo – dada a importância da CPR para o financiamento do agronegócio, as dívidas de produtos agropecuários representados em CPR-Física, na maioria das vezes não podem sequer ser computadas como dívidas passíveis de renegociação judicial.

Isso porque a CPR-Física, por sua natureza e lastro em produto agropecuário, além de servir como instrumento de materialização e formalização das trocas, operações comerciais com tradings etc. e para o financiamento de produtores rurais em geral, é bastante utilizada com o intuito de se conferir maior segurança jurídica às relações comerciais e ao financiamento na Cadeia Ampla do Agronegócio.

Atento a essa questão, o legislador, já na edição da Lei nº 14.112/2020 que alterou parcialmente a LRJ de 2.005, promoveu alterações significativas no regime da recuperação judicial do produtor rural, possibilitando, inclusive, ao produtor rural pessoa física recorrer à ferramenta para eventual necessidade de reorganização de suas atividades, alterando, por outro lado, o artigo 11 da Lei da CPR para excluir textualmente dos efeitos da recuperação judicial os créditos decorrentes da CPR física ou representativas de operação de barter, adiantamentos e/ou tratativas comerciais e financeiras na cadeia, vejamos:

Art. 11. Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto.

Mais claro, impossível. Para ilustrar tal situação, colacionamos abaixo decisão obtida recentemente junto ao Tribunal de Justiça do Estado de Goiás-GO que ratifica integralmente o que se denomina por “extraconcursalidade” das CPR-físicas nos casos a que se refere a Lei n. 14.112/20, verbis:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPUGNAÇÃO AO CRÉDITO. CÉDULA DE PRODUTO RURAL. NÃO SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ART. 11 DA LEI 14.112/20020. CRÉDITO EXTRACONCURSAL. SENTENÇA REFORMADA. 1. A Lei nº 11.101/2005, que trata da Falência e Recuperação de Empresa, estabeleceu que o recurso cabível da sentença que julga a impugnação é o Agravo de Instrumento. 2. Os créditos extraconcursais não são afetados pela recuperação judicial, ou seja, os credores não participam do processo de concorrência entre credores e podem prosseguir com suas cobranças e medidas de execução contra o devedor. 3. No caso concreto, a cédula que aparelha a impugnação ao crédito é representativa de troca por insumos (barter), portanto, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.” (TJGO, 5º Câmara Cível – Agravo de Instrumento nº 5816996-66.2023.8.09.0019, DJe. 11/03/2024, Relator Des. Marcus da Costa Ferreira)

Conforme se verifica do excerto acima, o que o Poder Judiciário está julgando é que, na prática, ficam de fora da recuperação judicial as dívidas do produtor rural, – maioria delas, pela larga utilização das CPR-Físicas no mercado – diretamente relacionadas à emissão desses títulos em decorrência de operações comerciais, crédito rural e até do financiamento para aquisição de imóveis rurais, como posicionamos na primeira coluna de 20 de março último.

Tal disposição, ademais, permite ao credor detentor de CPR-Física a adoção de todas as medidas extrajudiciais e judiciais necessárias para que ocorra o adimplemento da obrigação constante na CPR-Física, mesmo na hipótese de o devedor entrar com pedido de recuperação judicial, como demonstra a ementa da decisão acima colacionada.

Conclusão

Dessa maneira, podemos afirmar que a essencialidade de ativos ou bens do devedor para quaisquer finalidades legais, deve constar de forma expressa na CPR, seja ela física ou financeira, conforme o disposto no parágrafo único do art. 5 da Lei da CPR com a redação dada pelo artigo 42 da Lei do Agro, a Lei n. 13.986/20. 

Diante do exposto acima, podemos afirmar que a alteração proposta pelo PL nº. 3/2024 somente reforça posicionamento já adotado e ratificado por dispositivos legais ainda vigentes e que não estão sendo alterados – até então e de acordo com o que temos acompanhado do processo legislativo – razão pela qual essa coluna tenta colocar alguns “pingos nos is” em torno de celeumas infundadas que vem sendo, nesse caso, literalmente, “patrocinadas” por alguns players de mercado em busca de um autoproclamado protagonismo em um debate que beira às raias do “quixotesco”, neste particular. 

Portanto, não vislumbramos de antemão quaisquer impactos jurídicos significativos da nova redação veiculada por essa norma para o mercado do financiamento privado ao agronegócio, especialmente naqueles financiamentos lastreados em CPR ou em outros títulos e/ou contratos lastreados em CPR por conta do cotejo das redações da norma do PL nº. 3/2024 com as disposições vigentes da Lei do Agro e da Lei nº 14.112/2020. 

O PL nº. 3/2024, entretanto, foi submetido para apreciação do Senado Federal, de modo que ainda pode vir a sofrer modificações no texto aprovado pela Câmara dos Deputados em 26 de março de 2024, o que acompanharemos atentamente até a convolação final em lei.

*O texto dessa coluna foi preparado em um formato de artigo e teve por base estudo que desenvolvemos com os colegas Luiz Henrique Rodrigues Gonçalves Ferreira e Everson Gomes dos Santos, ambos advogados integrantes do Passo e Sticca Advogados Associados – PSAA, a quem a dedico e agradeço a coautoria desse texto.

André Ricardo Passos de Souza, é sócio-fundador do PSAA - Passos e Sticca Advogados Associados -, com MBA em Finanças e Mercado de Capitais pela MP Consultoria/Banco BBM, LLM em Direito do Mercado Financeiro e de Capitais pelo IBMEC, bacharel em direito pela UERJ. Professor nos programas de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Conselheiro Fiscal da Beneficência Portuguesa de São Paulo.
André Ricardo Passos de Souza, é sócio-fundador do PSAA - Passos e Sticca Advogados Associados -, com MBA em Finanças e Mercado de Capitais pela MP Consultoria/Banco BBM, LLM em Direito do Mercado Financeiro e de Capitais pelo IBMEC, bacharel em direito pela UERJ. Professor nos programas de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Conselheiro Fiscal da Beneficência Portuguesa de São Paulo.
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