China desafia o padrão: Dívida soberana em dólar pode ditar nova taxa livre de risco
Normalmente, o poder de determinar taxas livres de risco está nas mãos do governo americano, uma vez que os Estados Unidos contam com a confiança dos investidores globais, a melhor reputação fiscal e o menor risco de crédito. A negociação dos títulos soberanos (Treasuries) americanos forma a curva de taxa livre de risco, que serve como referência-chave para todas as decisões de financiamento, investimentos e precificação de ativos.
No entanto, essa situação pode mudar. A China vem ganhando gradualmente a confiança dos investidores globais, graças à sua disciplina fiscal, além das políticas industriais voltadas para inovação e economia verde. Com isso, seus títulos públicos offshore também podem começar a contribuir para a formação da taxa livre de risco em dólares.
Na semana passada, a China realizou uma emissão bem-sucedida de US$ 4 bilhões em títulos públicos denominados em dólar, divididos em duas fatias de US$ 2 bilhões cada: uma com vencimento de 3 anos e outra de 5 anos. A demanda foi extremamente elevada: o livro de ordens ultrapassou US$ 118 bilhões, cerca de 30 vezes o montante emitido.
A emissão chinesa saiu com spreads praticamente inexistentes em relação aos Treasuries. A tranche de 3 anos foi emitida com rendimento de 3,65% (0,05 ponto percentual acima do Treasury equivalente), enquanto a tranche de 5 anos teve rendimento de 3,79% (0,07 ponto percentual acima).
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O que isso significa para o mercado de dívida soberana global?
- O mercado reforça a credibilidade da China como emissor “quase livre de risco” no mercado internacional, disposto a financiar o país quase no mesmo nível do Tesouro americano — algo extremamente raro para um país emergente.
- Os investidores globais confiam cada vez mais na estabilidade econômica, disciplina fiscal e integração global da China. Consideram o país como potencial principal emissor na Ásia, possivelmente criando um novo “offshore dólar asiático” (Asia Dollar), competindo com EUA e países desenvolvidos (como o Euro Dollar).
- A China demonstrou capacidade de atrair capital de investidores globais e de se financiar nos mercados internacionais mais líquidos. O perfil dos investidores incluiu fundos internacionais, bancos globais e instituições asiáticas, mostrando uma base diversificada e sofisticada. Isso reduz a dependência do sistema bancário doméstico da China e torna o financiamento soberano mais equilibrado entre fontes internas e externas.
- Como a emissão foi realizada em Hong Kong SAR, a China fortalece a cidade como hub financeiro asiático, atuando como centro global de emissão e negociação de títulos em dólares. Isso também aumenta o interesse dos investidores em RMB, já que a emissão em dólares da China participa da determinação das taxas livres de risco.
Quais são as implicações para o Brasil?
A emissão chinesa em dólar reduz o custo de capital das empresas chinesas que atuam no Brasil, permitindo múltiplas fontes de financiamento no exterior com taxas quase “livres de risco” e prazos mais longos.
Isso fortalece investimentos em energia, logística, infraestrutura e tecnologias limpas, além de ampliar a capacidade das instituições financeiras chinesas de realizar novos projetos e aquisições no país — especialmente em renováveis, agricultura sustentável, minerais críticos e infraestrutura portuária e ferroviária.
O movimento também reforça o crédito verde no Brasil, considerando o papel da China como líder global em finanças sustentáveis, ajudando na reindustrialização do país e ampliando o financiamento para projetos de cadeia de suprimento de hidrogênio verde, saneamento e agricultura de baixo carbono.
Além disso, a emissão consolida não apenas Hong Kong como hub financeiro internacional, mas também a formação de um ecossistema financeiro chinês, criando novas oportunidades de integração e redução de custos de financiamento entre Brasil e China.
Dessa forma, além dos mercados de títulos de dívida nos Estados Unidos e na Europa, as maiores empresas, instituições financeiras e órgãos governamentais brasileiros podem acessar títulos denominados em dólares ou Dim-Sum bonds em CNH em Hong Kong, Lotus Bonds em Macau ou Panda Bonds (RMB / CNY) em Xangai, dentro do novo contexto de uma arquitetura financeira multipolar.
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