EUA sob pressão: Tarifas, dívida e rebaixamento colocam em risco ‘privilégio’ econômico do país

Desde a Segunda Guerra Mundial, a economia dos Estados Unidos é considerada uma das mais sólidas no mundo — mesmo em momentos de crise, o país se manteve como o porto seguro dos investidores. No entanto, nas últimas semanas, uma sucessão de eventos sacudiu os pilares da economia norte-americana.
O mercado já estava descontente com os juros elevados adotados pelo Federal Reserve na tentativa de conter a inflação, que disparou durante a pandemia. Vale lembrar que taxas de juros mais altas tendem a afastar investidores da renda variável, uma vez que eles conseguem maiores rendimentos na renda fixa.
O cenário, então, se deteriorou após o retorno de Donald Trump à Casa Branca. Em meio à instabilidade, surge uma questão: estaria em xeque o “privilégio exorbitante” dos EUA?
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O que é o “privilégio exorbitante”?
Em 1944, o dólar foi oficialmente consagrado como a principal moeda de reserva internacional no Acordo de Bretton Woods, dando origem ao que se convencionou chamar de “privilégio exorbitante” dos EUA.
O termo se refere ao benefício que os EUA têm por emitir a principal moeda de reserva global. Isso permite ao país se endividar em sua própria moeda a juros baixos, financiar déficits com facilidade e importar mais do que exporta sem grandes consequências cambiais.
Com isso, mesmo enfrentando déficits fiscais ou comerciais, os EUA continuam a atrair capital global, já que o dólar é visto como um ativo seguro.
Há ainda o conceito de “excepcionalismo americano” — a ideia de que os EUA ocupam uma posição única (e superior) no cenário global, seja por sua história, seus valores democráticos, sistema político, papel econômico ou influência internacional. Assim, a economia americana teria a capacidade de apresentar desempenho superior ao de outras grandes potências, mesmo em períodos de desaceleração global.
Economia dos EUA sob pressão
Logo no início de seu segundo mandato, Trump adotou uma postura protecionista e impôs tarifas a mais de 180 países — no chamado “Liberation Day”. As medidas tarifárias desagradaram antigos parceiros comerciais e revelaram dificuldades do atual governo em negociar com o restante do mundo.
A decisão também deu início a uma guerra comercial com a China. As duas maiores economias do mundo travaram um duelo de tarifas — que ultrapassaram os 100% — até chegarem a um acordo de trégua de 90 dias.
As tarifas elevaram as projeções de recessão nos EUA, já que pressionam os preços dos importados, aumentam a inflação e afetam o consumo. Após o acordo com Pequim, os bancos revisaram as previsões para baixo, mas a probabilidade de recessão ainda gira em torno de 30%.
Em relatório, os analistas da XP, lembram que as reações dos mercados ao pacote tarifário de Trump em abril — com queda do dólar e aumento nos rendimentos das Treasuries — ilustram um enfraquecimento da percepção do dólar como ativo seguro.
“Esse movimento contrariou o padrão observado nas últimas crises, quando o dólar geralmente se fortalecia em tempos de turbulência”, destacam. “A reação dos mercados foi forte no mês de abril, talvez com algum exagero, mas mostrou que os grandes investidores globais parecem estar dispostos a encontrar outros ativos que sirvam como ‘portos seguros’para seus recursos, em alternativa a ativos dolarizados, como a bolsa e as Treasuries”.
À medida que o governo norte-americano recuava na guerra comercial, os ativos americanos voltaram a se valorizar, principalmente a bolsa. O dólar, porém, não demonstrou o mesmo fôlego, mesmo com novos acordos em negociação. Isso levanta dúvidas sobre se os ativos americanos — especialmente o dólar e os títulos do Tesouro — ainda são os mais seguros do mundo.
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Rebaixamento e a dívida pública
O mercado também vem observando a crescente dívida pública nos EUA, que ultrapassou os US$ 36 trilhões — cerca de 122% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. O déficit fiscal de 2024 foi de 6,3% do PIB, sem perspectiva de reversão no curto ou médio prazo, segundo os analistas da XP.
Além disso, desde 2001, o país gasta mais do que arrecada anualmente, sendo que, só os custos com juros da dívida já superaram US$ 881 bilhões no último ano fiscal.
E o risco fiscal pode aumentar. No último domingo (18), republicanos na Câmara dos Representantes aprovaram um amplo projeto de redução de impostos, apelidado por Trump de Beautiful Bill.
A proposta torna permanentes os cortes de impostos implementados durante o primeiro mandato de Trump, o que pode ampliar a dívida em US$ 3,3 trilhões. O texto também prevê reduções temporárias em tributos sobre gorjetas, horas extras e juros de financiamentos de veículos, além de aumentos nos gastos com segurança nas fronteiras e defesa.
Esses números acenderam o alerta das principais agências de classificação de risco. A Moody’s foi a última das três grandes — depois da S&P (2011) e da Fitch (2023) — a rebaixar a nota de crédito soberana dos EUA de “AAA” para “AA1”.
A justificativa foi a incapacidade de sucessivos governos e congressos de adotar medidas consistentes para frear o crescimento da dívida e dos déficits. A polarização política e a ausência de reformas estruturais também minam a confiança na trajetória fiscal do país.
Isso levou os Treasuries de longo prazo a subirem na segunda-feira (19): o rendimento do Treasury de 30 anos avançou em torno de oito pontos-base, para 5,02% — o maior patamar desde novembro de 2023. Já a taxa dos títulos de 10 anos avançou sete pontos-base, para 4,55%.
O chefe de renda fixa dos EUA Greg Wiliensky e o lead de estratégias de crédito multisetor John Lloyd, da Janus Henderson, destacam que o rebaixamento da Moody’s reitera que o governo dos EUA tem trabalho a fazer no lado fiscal.
“Os participantes do mercado continuarão monitorando a evolução das políticas governamentais relacionadas ao orçamento, tarifas e negociações comerciais, enquanto tentam avaliar seus efeitos nas perspectivas da dívida e no crescimento econômico”, afirmam em relatório.
É o fim dos EUA que conhecemos?
O relatório da XP aponta que as tensões comerciais e geopolíticas dos últimos anos têm acelerado um processo de desglobalização e incentivado países a buscar alternativas ao dólar. A China, por exemplo, tem promovido o uso do yuan em transações com parceiros estratégicos e aumentado sua participação em reservas de ouro. Além disso, vários países estão firmando acordos bilaterais em moedas locais e testando moedas digitais soberanas.
Embora o dólar ainda seja dominante, há sinais de um sistema monetário mais multipolar em gestação. Investidores institucionais, que antes confiavam quase exclusivamente em Treasuries como ativos livres de risco, começam a diversificar suas carteiras com ouro, franco suíço, iene — e até mesmo bitcoin.
Apesar disso, essa mudança de percepção não representa ainda o fim do privilégio exorbitante, mas uma reprecificação dos ativos americanos. Caso o Tesouro dos EUA enfrente menor demanda em seus leilões, o Fed poderá ser forçado a atuar como comprador de última instância — um caminho que alimenta temores de monetização da dívida e pressões inflacionárias futuras.
Os EUA também têm uma carta na manga: o país continua na liderança em inovação e tecnologia.
“O ambiente de negócios ainda favorece o empreendedorismo e a mobilização de capital, e não há hoje no mundo um mercado de capitais tão profundo, líquido e confiável. Em outras palavras: para que se consolide um cenário de perda de liderança, seria preciso não apenas uma crise fiscal ou cambial, mas também uma quebra da capacidade de inovação — o que, ao menos por ora, não parece iminente”, afirmam.
Esse dinamismo ajuda a manter o apelo dos ativos americanos, mesmo em tempos de maior volatilidade. Mas a continuidade desse modelo dependerá da habilidade de Washington em preservar a confiança do mercado internacional — o que, cada vez mais, exige responsabilidade fiscal, clareza regulatória e coordenação geopolítica.