Opinião

O caso da Vale e os efeitos do sucateamento do modelo de regulação

17 fev 2019, 17:02 - atualizado em 15 fev 2019, 20:05
(Ibama)

Por Arthur Valle, para o Terraço Econômico

O Estado não deve ser empreendedor, vocação da iniciativa privada, todavia, deve exercer em paralelo seu poder fiscalizatório por intermédio da regulação (accountability e checks and balances).

Fortemente associadas a era de Fernando Henrique Cardoso, e tendo-se passado mais de vinte anos, será que podemos dizer que o modelo de privatizações deu certo no Brasil?

Essa não é uma pergunta das mais fáceis. Ora, se considerarmos tão somente a perspectiva contemporânea da precariedade de serviços ofertados pelos grandes conglomerados – outrora estatais -, lamentavelmente, há de se destacar que a resposta é um sibilante não!

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A verdade é que salvo alguns casos emblemáticos, como o da Embraer, assim como o de outros exemplos pontuais de empresas pertencentes à determinados segmentos, empresas estas muito diferentes das que prestam serviços ao grande varejo ou das que demandam investimentos volumosos em segurança pública e ambiental, o quadro geral é estarrecedor.

A telefonia se encontra claudicante e a antiga Telemar, atual Oi S.A., vem agonizando desde a era pré-cambriana, numa recuperação judicial insólita.

O setor financeiro é monopolista, cujo spread bancário para o varejo ostenta juros estratosféricos, não havendo acesso para novos players, e não oferecendo serviços adequados, vez que suas atividades se prestam exclusivamente para enriquecer os bolsos do baronato de acionistas.

O setor de saúde vive anos galácticos sob a égide da dinastia das seguradoras, que além de andar mal das pernas, possuem um séquito de lobistas a serviço da captura das agências reguladoras.

A indústria de informática nacional é inexistente e as companhias aéreas vivem momentos críticos em que, quando de forma cíclica expostas à determinados fatores exógenos – como a elasticidade dos preços do diesel -, se veem em risco de quase extinção.

Mas por que atacar tão enfaticamente o modelo de privatizações?
Neste ponto, caro leitor, você deve estar imaginando que, parafraseando o nobre pensador Duvivier, eu devo ser um economista de “humanas que vive da lei Rouanet, e que se gosta tanto de Cuba deveria morar lá!”, não é verdade? Só falta agora este incauto escritor aparecer apoiando a continuidade do regime de Nicolás Maduro!

Todavia, para sua surpresa atento espectador, devo salientar que o meu posicionamento recorrente, em obras publicadas desde os anos 90, tem sido no sentido de que o Estado jamais deveria atuar como empreendedor, sendo certo que suas qualidades e atributos estão bem distantes da vocação corporativa. Não havendo qualquer lógica para que se realize a gestão pública de empresas, cuja essência primordial consista em visar lucros.

Deste modo, posso afirmar com boa generosidade que se não tivesse havido aquele movimento de privatizações, o Brasil hoje estaria na fronteira tecnológica, no estado da arte da produção de bananas e de carrinhos de mão, que seriam utilizados para carregar smartphones da Cobra Tecnologia S.A (sim, aquela mesma da reserva de mercado dos anos 80).

Como alguns casos na atual conjuntura, as privatizações da época eram necessárias, entretanto, o movimento naquele momento era diferente, sendo certo que gravitava, de forma cuidadosa e responsável. A ideia de que a abertura de mercado deveria advir conjuntamente com mecanismos moderadores de contra-ponto, visando conter os ímpetos de um capitalismo internacional competitivo que se encontrava as vias de se instalar, canibalizando indiscriminadamente nossos frágeis parques industriais.

Nesta cadência, a equipe de notáveis do governo Fernando Henrique Cardoso idealizou um modelo regulatório e fiscalizatório, tendo fulcro em agências reguladoras, como o último bastião as “invasões bárbaras”.

Havia, assim, uma intelligentsia liberal na formulação de políticas públicas, mas com forte influência ideológica herdada do desenvolvimentismo das décadas anteriores.

Hoje, de modo diferente, há uma aversão total às políticas do passado, demérito, óbvio, da arrogância intelectual do governo Dilma, que sentenciou de vez o pensamento acadêmico econômico de esquerda aos confins de Hades, com sua política industrial tosca e mais que desastrosa, fundada em “campeões nacionais” da corrupção.

Nos tempos de nomes como Persio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco, Pedro Malan e Edmar Bacha, a preocupação, sem dúvida, era de abertura de mercado e atração do capital internacional. Entretanto, havia grande cautela para que não houvesse a perda da soberania econômica, com a possível devastação dos nossos setores industriais, fragilizados em face de um sistema tributário senil, resultado de anos de crise econômica e hiperinflação.

Assim, os planejadores foram zelosos e precavidos, desenvolvendo um modelo que se escorasse em agências reguladoras como forma de contrapeso, onde, se por um lado era arrebatada a gestão dos negócios do monopólio Estatal, por outro, haveria um empoderamento (enforcement) dos mecanismos fiscalizatórios, no intuito de coibir práticas espúrias ou desleais.

Contudo, cabe notar que de forma lastimável, este modelo de agências não foi implementado por completo. A título de exemplo, faltou a abrangência de setores críticos como o setor bancário, que possui diversas zonas cinzas não alcançadas pelo Banco Central e pela CVM, ou como o setor varejista, protegido tão somente pelo PROCON e pelo Código de Defesa do Consumidor, dentre outros setores afins.

Aliado a isso, nos governos que se seguiram, de inclinação heterodoxa, o modelo de agências sofreu de forma cumulativa a maldição da descontinuidade. As agências foram emparelhadas ou simplesmente sucateadas, fatores que permitiram a captura e a inanição do sistema como um todo.

O CASO EMBLEMÁTICO DA VALE DO RIO DOCE
Neste ponto, vale menção à lamentável e comovente tragédia de Brumadinho!

É necessário salientar que a mineração representa um setor onde há um gigantesco gap no tocante à regulação, vez que não há qualquer agência que promova uma profilaxia adequada de arcabouço regulatório neste segmento, cuja fiscalização se divide entre a Agência Nacional de Águas, o Ibama e os órgãos estaduais.

Por sua vez, o cabedal normativo afeto ao Marco Regulatório da Mineração tardou para se consolidar. Vejam o caso das terras raras, como explorar Nióbio se não há no Brasil mercado para o escoamento deste minério ou incentivos para a criação de uma cadeia produtiva para sua aplicação em ligas metálicas?

Por derradeiro, dois “acidentes” ocorreram para “bagunçar ainda mais o coreto”, fatos notoriamente de responsabilidade da Vale do Rio Doce e típicos de países subdesenvolvidos.

Em um país sério, já teria sido inconcebível conviver com um desastre de proporções avassaladoras como o de Mariana, sem que tivesse havido uma intervenção federal na Samarco, bem como a prisão de uma dezena de funcionários. Contudo, um segundo desastre como o de Brumadinho consiste numa aberração tenebrosa e burlesca, em um descalabro de proporções gigantescas.

Causa um grande espanto que somente após dois “acidentes” de grandes proporções, os diretores da Vale venham a público ventilar a substituição de barragens a montante, de custo bem inferior, por barragens a jusantes, caras, porém de padrão internacional, comprovadamente mais seguras e utilizadas em larga escala em países desenvolvidos. Algo que já era sabido muito antes do desastre de Mariana.

Fica claro aqui que os interesses financeiros sobrepujaram irresponsavelmente o risco de vida de centenas de cidadãos e os interesses dos stakeholders, o que pode configurar senão dolo eventual, homicídio culposo do board da instituição, vez que no mínimo há um cenário patético de gestão temerária e da tríade negligência, imperícia e imprudência.

Ad argumentandum tantum, afastando as hipóteses criminais contra a vida, no mínimo se configura aqui uma administração aventureira e nociva aos seus próprios acionistas, a se perceber pelos prejuízos e perdas significativas do valor de mercado da empresa que sobrevieram posteriormente ao ocorrido.

Se antes o foco era moralizar a classe política em termos de improbidade e peculato, o que, para o bem do país, tem sido feito com êxito, o momento deve ser de moralização na classe corporativa em crimes capitais e de caráter hediondos, acabando de vez com a irresponsabilidade desmedida dos administradores de grandes grupos econômicos.

Nesse contexto, se até o momento o valor de mercado da Vale do Rio Doce se situava em torno dos 340 bilhões de reais, seus acionistas, representados pelos dirigentes irresponsáveis dessas instituições, devem ser devidamente punidos por uma intervenção federal nos negócios da instituição, com devida vênia, é claro, ao direito de regresso contra os dirigentes das empresas.

Pelos meios legais, o Estado deveria promover tal intervenção na Vale do Rio Doce, de modo que possa planejar um sistema de regulação efetiva, mas principalmente, rigorosa pelo ponto de vista da segurança pública (por exemplo, que inclua a compulsória substituição das barragens a montantes). Compliance, segurança e governança orientada para boas práticas, deveriam ser as palavras de ordem do atual governo, de modo que a empresa se transforme efetivamente numa companhia de padrão internacional.

Mas ainda há quem acredite que uma intervenção geraria um problema de risco moral, uma sensação de quebra de contratos, fantasma que vem orbitando – por décadas – a credibilidade dos negócios no Brasil.

O medo intrínseco seria o da fuga do capital internacional, algo que creio ser paranoico e infundado, pois permitir uma gestão temerária – que é capaz de provocar tais atrocidades -, é muito mais danoso para a imagem dos negócios no país, do que uma intervenção preventiva, que destitua devidamente dirigentes negligentes e incompetentes.

Que deixem a empresa sangrar sem pena, e que suas ações se tornem penny stocks, vez que a intervenção garantiria a manutenção dos empregos, dos contratos e da atividade econômica, como também a revalorização futura dos seus papeis de forma muito mais robusta.

De fato, a quebra de contratos por motivo torpe deve ser de todo modo evitada. Não obstante, uma intervenção preventiva é mais que merecida, numa empresa que não possui condições mínimas de exercer suas atividades de modo apropriado e sem risco para a segurança pública e para os seus acionistas. Isso é tudo o que um investidor sério e qualificado deseja!

Há motivos de sobra para justificar uma intervenção, exonerar executivos, promover prisões em larga escala e manter a atividade da empresa tutelada por algum tempo pelo Estado, sob a gestão de um administrador judicial. Tal ato demonstraria que o Brasil é um país que respeita as leis, os contratos e a segurança pública, ambiental e jurídica!

De fato, os investidores são racionais. Em que pese inicialmente a punição de empresas em situações duvidosas, mas sendo o ramo de atividade dessas companhias sólido e lucrativo, naturalmente o mercado acerta o seu norte, voltando aos poucos, a realocar investimentos nas ações dessas companhias.

O próprio Estados Unidos estatizou diversas empresas na crise de 2008 e, logo após saneado o sistema, estas empresas passaram a valer muito mais do que valiam ao tempo da crise.

Sofremos da crise da austeridade!
Como investir num país que permite, de modo impune, o estouro de duas barragens com indícios evidentes de negligência, e que resultou num massacre maciço como ocorrera no caso de Mariana e Brumadinho?

Ainda que, no prelúdio, haja uma queda generalizada nas ações da Vale do Rio Doce e seu valor de mercado chegue a 50 bilhões, o que, de fato, pode acontecer no caso de uma intervenção judicial, basta o governo comprar suas ações na baixa para vendê-las mais tarde! Intervir, estatizar se necessário, reestruturar e reprivatizar, com um lucro fabuloso para a imagem do país, para o bolso dos acionistas (pelo menos aquele que persistiram e depositaram um voto de confiança no governo), e para os cofres públicos.

Assim, na ausência de investidores em face de uma eventual e momentânea crise de credibilidade em virtude da intervenção, o governo passaria a ter uma chance de ouro para a aquisição de uma empresa na baixa, vindo mais tarde, por oportuno, à privatizá-la novamente, ganhando algumas centenas de bilhões no processo.

Por que não levar a empresa enferma para o posto Ipiranga? Money neveer sleeps!

Arthur Valle
MBA do IBMEC, Mestre em Administração pública pela EBAPE/FGV. Autor das obras: “Fortuna Imperatrix Mundi – Um alerta para a crise global, Muiraquitã, 1999. A revolução do gás não convencional nos EUA: uma nova corrida do ouro?, TereArt Editora, 2015.”

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