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Felipe Miranda: cartas nigerianas e a morte dos especialistas em finanças

17 jun 2020, 14:49 - atualizado em 17 jun 2020, 14:49
“Não há qualquer arrogância aqui, tampouco tentativa de mostrar uma relevância superior àquela que temos”, afirma Felipe Miranda

A capacidade dos modelos digitais atingirem grande público sem grande custo marginal ou, para parecer mais chique e pseudossintonizado, a escalabilidade das organizações exponenciais oferece vantagens muito interessantes. Ao mesmo tempo, traz uma série de riscos também.

Imagine o seguinte. Hoje, a Empiricus deve ser lida e/ou vista por vídeo, diariamente, por cerca de 1 milhão de pessoas. Aí somam-se e-mails, comentários no Telegram, app, mídias sociais, entre outros. Essa audiência cresce e se renova a cada dia.

Não há qualquer arrogância aqui, tampouco tentativa de mostrar uma relevância superior àquela que temos. Sei bem meu lugar no mundo e sigo meu caminho sem amigos importantes. Apenas quero dizer que conversamos com muita gente.

Pense num jeito de se ganhar dinheiro a partir dessa audiência sem precisar saber nada de investimentos ou do mercado.

Vamos dividir essa grande massa de interlocutores em vários grupos. Cada um deles recebe, por semana, uma carteira recomendada de ações diferente.

Por mera aleatoriedade, alguns vão receber carteiras cujas performances serão excelentes; outros, carteiras com desempenho ruim. Jogamos fora as turmas de track record negativo. Para as lucrativas, fazemos a mesma coisa na semana seguinte, com nova divisão em grupos. De novo, teremos vencedores e perdedores. Repetimos o procedimento por cinco semanas.

Ao final, o grupo que só recebeu recomendações excelentes ao longo de cinco semanas vai nos achar geniais, verdadeiros gênios do mercado.

Então, perguntamos para esse pessoal se eles teriam interesse em continuar recebendo as tais indicações de investimento, cobrando por isso, claro, um preço bem caro — afinal, eles nos acham gênios e estariam dispostos a pagar dezenas de milhares de reais, talvez centenas de milhares a depender do patrimônio, para saber exatamente quais as ações que mais vão subir na semana seguinte.

Essa informação não tem preço. Muita gente topa e… bingo! Os donos da Empiricus ficaram ricos, num plano infalível colocado de pé em cinco semanas, sem saber absolutamente nada de finanças, economia e investimentos.

Claro que tudo isso viola as regras do mercado de capitais e está desalinhado à Instrução CVM 358, que versa sobre as regras de análise de valores mobiliários.

Você não pode gerar relatórios aleatoriamente e vendê-los por aí para grupos diferentes. A ideia inicial, apenas uma fábula para provar o ponto, não é minha, evidente. Há uma literatura extensa sobre o assunto, no que ficou conhecido como “cartas nigerianas”, depois de golpe parecido no respectivo país.

Seria impossível para a Empiricus fazê-lo, mesmo se renascêssemos sobre outra essência ética e moral, outros valores e outra vocação e não tivéssemos, como temos, o interesse de fazer nosso cliente ganhar dinheiro acima de tudo. Nossa empresa recebe grande escrutínio da mídia, da própria CVM e, talvez mais fundamental, de seus próprios assinantes, que logo denunciariam o golpe.

Mas e se nós estivéssemos à margem do sistema? Se conseguíssemos passar abaixo do radar da regulação?

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“No ecossistema complexo, difuso e multicapilar das redes sociais, como regular analistas (irregulares e sem certificação) travestidos de influencers e traders?”, questiona (Imagem: Unsplash/@konkarampela)

Se você oferece recomendações aleatórias e o mercado, pela sua lógica interna, premia iludidos pelo acaso, sobretudo no curto prazo, o que poderia estar acontecendo em redes sociais e afins? Será que não haveria muita gente fazendo análise de valores mobiliários de forma irregular? Talvez manipulação de mercado e “pump and dump”?

No ecossistema complexo, difuso e multicapilar das redes sociais, como regular analistas (irregulares e sem certificação) travestidos de influencers e traders?

Essa construção me veio à cabeça ao ler o livro do Tom Nichols, chamado “The Death of Expertise” (A morte da expertise). Resumidamente (talvez de forma grosseira, desculpe), Nichols faz uma denúncia contra um traço de empobrecimento intelectual a partir da disseminação da internet e das redes sociais.

Não é uma crítica pura a essas duas coisas. Ele reconhece, também, a maior difusão de informações valiosas, a capacidade de armazenamento de dados e os ganhos sociais obtidos com facilitação da educação por meio da internet.

Contudo, o fenômeno também estimulou uma onda antirracionalista, apoiada num igualitarismo na verdade inexistente e em muito narcisismo (cada um se acha no direito de opinar sobre qualquer coisa, com igual profundidade; e ai de você se discordar).

O conhecimento especializado vai perdendo espaço no tempo, porque todos se acham especialistas, do paciente que se automedica a partir de uma pesquisa de 5 minutos no Google (a nova versão shakespeariana das conversas entre pacientes e médicos: to be cloroquined or not to be, com os primeiros sugerindo aos últimos o que fazer, claro) ao novo atleta recém-admitido entre o grupo de night bikers após o término de seu casamento, agora sabe-tudo de dieta cetogênica, passando, claro, pelo investidor de ações, que fez seu primeiro investimento no mês de abril e agora dá cursos online sobre renda variável para a audiência de sua namorada blogueira no Instagram, monetizando via “closefriends” a turma de amigos e amigas rica e fútil que costumava passar o réveillon em Trancoso.

Curioso como cheguei ao livro de Nichols pela leitura de sua resenha em coluna de Hélio Schwartsman, batizada “Adeus à razão”. Antes, era assim que nos informávamos sobre as coisas. Líamos grandes colunistas nos jornais de maior circulação. Poderíamos discordar deles e, claro, eles também falavam bobagens vez ou outra.

Mas, para o sujeito chegar ali, houve toda uma trajetória, um conhecimento técnico numa determinada área, respeito dos pares conquistados por décadas e por aí vai. Hoje, você, formado em turismo, vira amigo da Bruna Marquezine porque um colega de trabalho o apresentou.

Ela faz um post no Instagram marcando seu perfil e recomendando que o sigam. Pronto, você virou celebridade, com uma audiência enorme e poderá falar para essa audiência com grande autoridade, porque todos estão ávidos por seguir alguém.

Lembre-se de que, se você comprar uma ação e ela acabar subindo (aleatoriamente, há 50% de chance de isso acontecer), boa parte ali vai achá-lo um grande expert. A cada dois influencers que fizerem isso, um vai dar certo, na média.

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“Você não entende muito de balanço, DRE e análise, é bem raso no assunto, mas profundo o suficiente para enganar bem”, afirma (Imagem: REUTERS/Brendan McDermid)

Então, pensa no seguinte, um exemplo meramente hipotético.

Você faz um curso de mídia training e comunicação digital. Investe uma grana razoável nas redes sociais para formação de audiência, com conteúdos descolados sobre finanças. Passa um tempo e você firma parceria com uma corretora, que, claro, está interessada na geração de leads (clientes) para si a partir da sua audiência.

Sua especialidade é small caps — não à toa, o nicho mais fácil para “pump and dump” e manipulação de mercado.

Você não entende muito de balanço, DRE e análise, é bem raso no assunto, mas profundo o suficiente para enganar bem. Consegue juntar uma ou outra palavra difícil com algum termo típico associado a tiros especulativos.

“Essa empresa vai se envolver num M&A e ser comprada pela rival estrangeira que precisa resolver seu problema de logística.”

“Essa companhia vai listar nos EUA seu braço de tecnologia e destravar muito valor.”

“Esse turnaround vai ser espetacular, porque o novo CEO veio de uma empresa tech com um e-commerce revolucionário, já fez um Super App, vai adotar a computação em nuvem e uma estrutura omnichannel poderosa a partir da instalação imediata de ship from store 100% automatizado e digital.”

A esta altura, sua audiência já supera 1 milhão de seguidores. Você muda a estratégia. Decide mostrar você mesmo comprando suas small caps.

Para desviar da regulação, você faz um disclaimer inicial básico: “Eu não sou analista de valores mobiliários e nada que eu fizer aqui deve ser encarado como uma recomendação de investimento”.

Mas, claro, uma rosa ainda teria o mesmo cheiro se tivesse outro nome. Então, você começa seu processo de análise de valores mobiliários: “Vou comprar essa ação porque ela possui esta e aquela vantagem competitiva, tais canais de crescimento, valuation atrativo, opcionalidades não precificadas”. Blá, blá, blá.

“Estou aqui comprando R$ 100 mil e também vou comprar para meu filho. Mas, olha, não é uma recomendação. Estou executando a ordem pela corretora ABCD, que acho maravilhosa e é onde tenho conta.”

Sua própria audiência gera um movimento comprador na ilíquida small cap — na corretora indicada, claro, agora de posse do cadastro dos novos investidores. A ação sobe. Você vende — sem avisar ninguém, evidente; ou avisando depois (só depois, porque você também é filho de Deus) — com um bom lucro.

Todos foram felizes para sempre. Você ganhou dinheiro porque comprou na frente e enfiou no fluxo comprador que você mesmo criou.

Ainda saiu como mago das finanças e educador financeiro, que recomendou (sim, essa é a palavra certa, embora você apenas não a tenha usado ipsis verbis) uma ação que subiu e dividiu nobremente com seus seguidores.

A corretora ganhou novos clientes e agora está pronta para o IPO, com um múltiplo alto de valor da firma sobre usuário, vendendo a historinha de um alto LTV/CAC. É o crime perfeito.

Bom, mas e o investidor? Ora, quem se importa?

CIO e estrategista-chefe da Empiricus
CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.
CIO e estrategista-chefe da Empiricus, é ex-professor da FGV e autor da newsletter Day One, atualmente recebida por cerca de 1 milhão de leitores.
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