Economia

O que não te contaram sobre trabalho escravo: a filantropia de araque que prejudica os trabalhadores

25 out 2017, 23:03 - atualizado em 05 nov 2017, 13:52

Escravo

Por Leonardo Siqueira, do Terraço Econômico

As pessoas que vem para cá saem de regiões muito pobres da Bolívia. Quando chegam, só querem trabalhar. Algumas oficinas tentaram contratar por CLT, com 8 horas de trabalho. Mas os bolivianos acham ruim – preferem ganhar por produção. Estão no Brasil para ganhar dinheiro – não veem sentido em ficar cinco, seis horas sem nada pra fazer. Além disso, o patrão não tem obrigação de bancar a moradia dos costureiros. Eles dormem no trabalho porque é mais barato, pois economizam o aluguel e o transporte. Claro que há problemas, mas estão confundido irregularidade trabalhista com trabalho escravo.

(Luis Vásquez, 43 anos, Boliviano há 12 no Brasil*)

Eu me lembro bem da época em que morei pela primeira vez no exterior. Tinha 20 anos e precisa aprender inglês. Fui para Nova Zelândia com dinheiro suficiente apenas para passagem e algumas semanas de estadia, o resto eu conseguiria trabalhando por lá.

Em dois dias (DOIS!) consegui um emprego numa Pizzaria italiana. O cargo era de Dishwasher, nome bonito para lavador de louça. No primeiro dia eu lavei mais louça do que em toda minha vida! A rotina era simples: chegava a tarde e saia de madrugada. Às vezes o dono da pizzaria, um italiano muito simpático, me ligava para ir de manhã dar uma força extra. E lá ia eu passar algumas horas cortando muçarela, peito de peru e outros frios para usar nas pizzas que iam ser feitas à noite.

O salário não era alto e parte dos benefícios era em comida: as pizzas que eu mesmo fazia. Folgas apenas uma vez por semana. Nos horários de pico eu sequer tinha tempo de olhar o celular. A minha mão fica enrugada pelos produtos para lavar louça.

Segundo alguns, aquilo poderia ser trabalho escravo. Eu, que estava na situação posso dizer: Não, não era! Apesar de puxado, eu poderia me demitir a hora que quisesse. Poderia não ir quando quisesse, e com o salário conseguia cumprir meu objetivo de aprender inglês. Era sacrificante, mas o melhor que um estrangeiro recém-chegado, com dificuldades na língua nativa, poderia encontrar. Era um trabalho puxado, mas definitivamente não pode ser considerado trabalho escravo.

Essa é uma situação. Outra situação é a de 18 peruanos que fugiram de uma oficina de costura na zona leste de São Paulo direto para uma delegacia. Contaram para os policiais que trabalhavam 17 horas por dia e que um vigia proibia os funcionários de sair da oficina. Este sim, é trabalho escravo!

São duas situações extremamente diferentes. Mas não para o Ministério do Trabalho e do Emprego. Para este órgão, os dois casos têm a mesma gravidade e tudo é trabalho escravo. Ambos deveriam ser fechados e os escravos libertos. E por que?

A definição de trabalho escravo abrangente demais

No Brasil, uma mudança no Código Penal afrouxou enormemente o conceito de trabalho escravo. Além do conceito de trabalho forçado – o que definitivamente no meu caso não era, mas nos dos peruanos sim – passou a incluir a jornada exaustiva e condições degradantes como critérios para caracterização.

O italiano da pizzaria que me ajudou muito poderia ser considerado um escravagista, já que a cozinha de uma pizzaria definitivamente não é um escritório em Wall Street. Ela é quente, úmida e apertada.

Em outras palavras, trabalho análogo à escravidão não é aquilo que a Organização Internacional do Trabalho, artistas e ativistas entendem por trabalho escravo. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) já considerou escravos pedreiros com salário de R$ 5 mil por mês. Oras, R$ 5 mil colocam os pedreiros tranquilamente entre os 20% de brasileiros mais ricos. Mas para alguns, é a mesma situação dos peruanos¹.

Outro exemplo. Em 2013, a fiscalização enquadrou uma construtora como escravista. Os 20 funcionários possuíam carteira registrada, recebiam horas-extras e bônus por produção. Alguns, de novo, ultrapassavam salários de R$ 5 mil. Não havia pessoas acorrentadas, ameaçadas, trabalhando para pagar uma dívida com os patrões ou para recuperar um documento. Mas, como não havia lençóis nos beliches do alojamento e os banheiros estavam sujos, a construtora foi considerada uma escravagista². Novamente, para o MTE tudo é trabalho escravo.

Eu mesmo procurei exaustivamente no Google outros exemplos de trabalho escravo no qual os trabalhadores viviam sob ameaça, mas não encontrei praticamente nenhum. O exemplo dos peruanos, consegui em um artigo do Leandro Narloch². O que é evidência que talvez a lei não estivesse cumprindo o seu papel.

A lei anterior era muito abrangente e colocava no mesmo saco esse tipo de situação que – convenhamos – são diferentes. Dada definição abrangente que poderia punir até mesmo uma padaria, o governo decidiu torná-la mais específica. Segundo a portaria nº 1.129 do Ministério do Trabalho, “jornada exaustiva” e “condição degradante” não bastam para caracterizar trabalho análogo à escravidão: é preciso que o trabalhador seja privado da liberdade de ir e vir para que a condição se configure.

Além disso, resolveu mudar os critérios para a entrada de empresas na chamada “lista suja”.  O empregador que for flagrado cometendo irregularidades pode assinar um acordo se comprometendo a melhorar as condições de trabalho no negócio, sem entrar na “lista suja”.  Assim, os empregadores integrarão uma segunda relação, com a ressalva de que se trata de empregadores que, através daqueles instrumentos, propuseram-se a sanear, reparar, prevenir e promover medidas que evitarão, em seu âmbito e entorno de atuação, novas ocorrências.

O que na minha visão tenta resolver o problema. Já eu antes, o local seria fechado e os “escravos libertos”. Me parece extremamente sensato.

Para os que estiverem na lista, caso as exigências de melhoria sejam cumpridas, os empregadores podem então pedir a exclusão de seu nome da relação após um ano.

Brasil. Recordista mundial em ações trabalhista

A essa altura do campeonato é desnecessário dizer que todo mundo é contra o trabalho escravo. Não há dúvidas de que há trabalho escravo no Brasil e praticamente em qualquer país do mundo. Resta menos dúvidas ainda de que esse tipo de situação deve ser coibido. E para isso há mecanismos.

O governo errou sim ao não levar a debate público um assunto sensível como esses. Este tipo de assunto é e sempre será muito criticado por aqueles que dizem defender os direitos dos trabalhadores.

Mas, na minha visão, o governo acertou ao limitar a definição de trabalho escravo. Esse tipo de lei abrangente que poderia definir qualquer emprego sacrificante como trabalho escravo é o que coloca o país como recordista em ações trabalhistas. Só em 2016 foram 3 milhões de ações. Atualmente há 2,5 milhões de processos em tramitação no Brasil, segundo estatísticas do Tribunal Superior do Trabalho³.

Diferente do que alegam muitos, definitivamente essa portaria não libera o trabalho escravo, mas torna mais específica as definições para que não a alguém que ganhe R$ 5 mil em um trabalho exaustivo mas que pode pedir demissão a qualquer momento seja colocado no mesmo saco dos peruanos que tinham um vigia na porta da oficina.

Filantropia de araque. A quem essas manchetes beneficiam?

A partir do momento em que Temer anunciou medidas que flexibilizam as normas do trabalho escravo já era esperado esse tipo de reação. Alguns jornais tentaram resumir a lei em um título de 140 caracteres. “Governo Temer libera trabalho escravo”, “Governo retrocede a favor de escravistas”, etc etc etc. Tentaram gerar fatos nos títulos. Atores se colocaram em pé na hora “a favor” dos trabalhadores. Ativistas disseram que este governo tinha colocado o país no século XVII.

Se colocar contra a nova portaria de trabalho escravo pode parecer beneficiar os trabalhadores, aliás quem não quer locais mais seguros, condições melhores de trabalho e salários maiores. Porém, os ativistas não percebem o efeito naqueles que ficarão desempregados. Esse sensacionalismo não ajuda os trabalhadores e acaba eliminando alternativas de quem já tem poucas opções de trabalho.

Explico. Esse tipo de ativismo, Nassim Taleb chama de Filantropia de Araque. A atividade de “ajudar” as pessoas de uma forma visível e sensacional, não leva em conta o cemitério oculto de consequências não-intencionais. Muitos deles sequer analisaram a portaria em detalhes ou pensaram nas consequências não-intencionais.

Em praticamente 100% dos casos em que há uma notícia de “Ministérios libera X trabalhadores em condições de escravidão”, quando a indenização acaba os “escravos libertados” descobrem que os fiscais os transformaram em desempregados dependentes de programas assistenciais.

No começo dos anos 1990 o Congresso norte-americano proibiu a importação de vários produtos fabricados por trabalho infantil em Bangladesh. Claro que muita gente aplaudiu, mas não pensaram nas consequências não-intencionais. As crianças que pararam de trabalhar nas fábricas por conta da lei foram para a prostituição, ou passaram a vender chiclete no semáforo ou trabalhar em pedreiras. A lei foi benéfica? Não, não foi. Tivesse perguntado às crianças de Bangladesh o que elas prefeririam, com certeza iriam escolher não serem boicotadas.

Mas claro, o produto final, o resultado geral, isso não interessa aos artistas, ativistas e alguns políticos populistas. Pois, nesse momento ele já se beneficiaram muito com esse tipo de manchete. Ao alimentar a mentalidade de que é o rico contra o pobre, empresário versus trabalhador, o grande comendo pequeno, eles ganham mídia, ganham votos e ganharam o status de cool. O problema é que, mas na maioria dos casos, não ajudam aqueles que deveriam estar no foco: os trabalhadores.

¹http://www1.folha.uol.com.br/colunas/leandro-narloch/2017/10/1928006-governo-acerta-ao-conter-denuncias-de-trabalho-escravo.shtml
²http://veja.abril.com.br/blog/cacador-de-mitos/o-mito-do-8220-trabalho-analogo-a-escravidao-8221/
³http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,AA1453494-9356,00-BRASIL+E+CAMPEAO+MUNDIAL+DE+ACOES+TRABALHISTAS.html
http://veja.abril.com.br/blog/cacador-de-mitos/parem-de-dizer-que-somos-escravos-pede-lider-dos-bolivianos-em-sao-paulo/

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