Opinião

Omarson Costa: Governo como Plataforma (GaaP) é mais do que serviço; é direito do cidadão

26 nov 2020, 19:24 - atualizado em 26 nov 2020, 19:24
“As experiências dos governos que resolveram quebrar a lógica compartimentada e consolidar informações têm mostrado que o modelo é capaz de economizar dinheiro”, diz Costa (Imagem: Divulgação)

Durante parte do século 19 e todos os cem anos seguintes, as repartições públicas tiveram mais ou menos a mesma cara na maior parte do mundo. Salas e mais salas com mobílias velhas, arquivos de papel e um número interminável de fichas. Cada repartição com sua coleção particular de formulários.

Dentro desse modelo a informação quase nunca é compartilhada, nem entre os níveis de governo e às vezes nem mesmo dentro da mesma esfera administrativa.

Um dos exemplos clássicos é o nosso RG. Apesar do nome Registro Geral passar a ideia de ser um documento de âmbito federal, sua emissão é de responsabilidade dos Estados da federação. Logo, você pode ter vários registros diferentes (um por Estado). Sem contar o CPF, o título de eleitor e CNS (para uso pelo SUS). Cada um no seu quadrado.

A virada do século coincidiu mais ou menos com a popularização da Internet e sua “information superhighway”.

O primeiro movimento dentro dos governos foi o de digitalizar papel, como manuais e legislação. Alguns serviços passaram a ser oferecidos online, como atualização de cadastro, segunda via de algum imposto, etc. Basicamente trocamos algumas fichas e formulários por seus correspondentes em pdf ou em webforms.

Alguns processos foram transformados em código de programação e integraram alguns bancos de dados. Imagine um Detran hipotético com uma base de carros e seus donos.

Aqueles montes de registros em fichas agora estavam armazenados em servidores. A lógica se replica no resto da estrutura administrativa.

E quando precisamos usar os dados de uma repartição em outra? Provar para a Receita que você tem um carro, por exemplo. Mesmo no mundo digital, ainda ocorre o chamado “compartilhamento de dados”, que funciona mais como corta e cola.

Dados não são papel, então essas cópias se espalham por diversos órgãos, gerando potenciais falhas de segurança, privacidade e precisão. Se eu troco meu número de telefone e aviso só a Receita, o INSS, a Justiça Eleitoral e outros órgãos não vão saber.

Não existe só duplicação de dados, mas também de esforços. Diversos órgãos têm seus próprios bancos de dados e até sistemas de pagamento, cada um com regras específicas.

É a própria reafirmação do adágio batizado como Lei de Conway na ciência computacional: “organizações que desenham sistemas são restritas a produzir modelos que copiam a estrutura de comunicação dessas organizações”.

Em outras palavras, os e-govs foram concebidos em torno das estruturas governamentais e não de acordo com as necessidades dos cidadãos, escreve em um paper Richard Pope, do Ash Center for Democratic Government and Innovation, ligado a Harvard.

Dentro dessa lógica, fica complicado para outras áreas dos governos, e mesmo às fundações ou setor privado, complementarem os serviços. A lógica é unidirecional, entre departamento e serviço.

Governos, vending machines ou marketplaces?

Com o sucesso de empresas como Google, Amazon e Facebook entramos na Web 2.0 (ou 3.0 ou 4.0; cada guru denomina um número). Essencialmente a mesma tecnologia, mas com uma ideia diferente – compartilhamento e colaboração.

Os governos não deveriam fazer o mesmo? Afinal, são produto da ação coletiva. A gente se junta, faz leis, paga impostos e ergue instituições para tomar conta de problemas grandes demais para se enfrentar sozinho.

Segundo o professor Donald Kettl, esse modelo compartimentado e hierárquico são os governos vending machines (aquelas máquinas de snacks que vemos em estações de metrô, hospitais, faculdades etc.).

O escritor Tim O’Reilly aproveitou a imagem com um exemplo simples: a gente paga impostos e espera serviços em troca. “Quando não os recebemos, só nos resta protestar” (já ficou com um dos seus pedidos emperrados no braço mecânico dessas máquinas?).

Acontece que os softwares e, mais precisamente, a Web 2.0 (3.0, 4.0 …), levaram essa lógica ao limite. O programador Eric Raymond, um dos fundadores da Open Source Initiative, escreveu o livro “A Catedral e o Bazar” sobre as diferenças entre os modelos de software proprietários e os open source, colaborativos, como um bazar onde a comunidade troca bens e serviços.

O’Reilly observa: nem todo bazar é igual. O que o torna pujante e vantajoso é a competição, que garante maior oferta e preços mais camaradas.

No mundo da tecnologia, o equivalente do mercadão seria uma plataforma bem sucedida. Inovações que criam um framework e permitem a geração de valor por um sem número de competidores. Foi assim com o PC, com a Web, com a Apple Store e com o Google Play na era dos smartphones.

A partir dessa inferência, O’Reilly cunha a expressão “Government as a Plataform” e faz uma última analogia. Os Estados Unidos decidiram nos anos 1950 criar uma rede de rodovias nacionais.

O governo fez as estradas e depois criou as regras de uso. A partir daí, se conectaram a elas as rodovias estaduais, a malha viária das cidades, os negócios nas suas margens. Serviu como um novo indutor de crescimento na economia americana.

Vale reproduzir aqui a definição, em tradução livre:

“Informação produzida por ou em nome de cada cidadão é a seiva da economia e de um país. O governo tem a obrigação de tratar como um bem nacional. Cidadãos estão mais conectados que nunca e dispõem das habilidades e a vontade de resolver os problemas que os afetam no nível nacional e local. Serviços e informações governamentais devem estar disponíveis ao cidadão quando e onde ele precisar deles. Assim, ganham o poder de gerar inovação dentro desta nova lógica de governança em que governos são agregadores e facilitadores, nem sempre pioneiros.”

O Governo como Plataforma

As experiências dos governos que resolveram quebrar a lógica compartimentada e consolidar informações têm mostrado que o modelo é capaz de economizar dinheiro e sofisticar os tipos de serviços fornecidos ao público. Estônia e Portugal têm 98% de seus serviços públicos digitalizados.

No Reino Unido, o Government Digital Service foi criado em 2012 para liderar a transformação digital e tornou-se pioneiro na aplicação de GaaP. O primeiro foco foi unificar todos os serviços no portal Gov.UK. No segundo momento, o esforço mirava ganhos de eficiência.

O GDS criava blocos de dados que qualquer departamento poderia acessar para em cima dele construir serviços. Exemplos são o GOV.UK Pay, um sistema de pagamento unificado, e GOV.Notify para mandar notificações em texto aos cidadãos. Pelos cálculos do governo britânico, esse processo economiza cerca de 1,7 bilhão de libras por ano.

Pela forma como está sendo construído, o sistema britânico é uma espécie de SSoT (Single Source of Truth) de serviços públicos.

Os dados ficam armazenados em uma única fonte, ou “Data Lake”, para usar o termo da moda. Isso resolve o problema do “corta e cola” mencionado antes. Se eu atualizar meu celular na plataforma do governo, todos os órgãos têm acesso ao mesmo dado.

Para que uma plataforma alcance seu potencial, deve ser utilizada sem suporte, uma espécie de quilão de serviços. Você entra na fila e pega o que quer.

Uma plataforma precisa ser construída para que os usuários entendam o que ela faz e comecem a usá-la. Para isso, há pelo menos três requisitos essenciais:

– Documentação bem feita e atualizada (como ocorre nos projetos de software livre)
– Testes para que os usuários alvo possam avaliar sem a carga total de tráfego de um site no ar
– Padrões abertos para que times diferentes possam ter confiança de que estão falando a mesma língua e os designers construam o front-end (aquilo que fica visível para os usuários finais) em cima de dados consistentes e previsíveis.

Segundo a ONU, 153 países possuem hoje portais padrão OGD ou open government data.

Como talvez você tenha notado, o cidadão que vai preencher o formulário para um registro de casamento não é o único tipo de usuário de um GaaP. Os servidores e gestores públicos buscam relatórios e análises, enquanto organizações e empresas também podem entrar no sistema para retirar as APIs que lhes interessam para construir um serviço.

Isso lembra muito o esquema das lojas de aplicativos de smartphones. Não é só a Apple, nem só os donos de iPhone, que acessam a Apple Store. Tem também as empresas que produzem os apps.

Aqui no Brasil um exemplo virtuoso é o Pix. O Banco Central criou a estrutura e as instituições homologadas podem se ligar ao sistema. Mas não é o BC que faz tudo. Cada instituição cuida da sua própria interface. Saiba mais sobre o PIX aqui.

E ainda vem aí o Open Banking, que vai facilitar e melhorar ainda mais os serviços financeiros ao consumidor.

Governança e Segurança

Só que isso gera duas questões importantes: governança e segurança. As regras de uso para essa supervia de informações precisam ser bem feitas para evitar vazamentos.

O modelo holandês não tem a mesma preocupação em ser SSoT. A prioridade foi criar um sistema de autenticação seguro. Ter um ID eletrônico governamental é o status quo tanto para servidores quanto usuários. Cerca de 80% dos holandeses possuem um DigiD.

Quanto mais as plataformas permitirem o uso de dados de forma horizontal nas administrações, maior a necessidade de um sistema robusto de identificação para proteger a integridade dos dados.

Não podemos nos esquecer que bancos de dados precisam ser fortemente protegidos porque as ameaças dos cibercriminosos vão crescer na esteira da digitalização de serviços e da centralização.

O governo brasileiro sofreu mais de 10 mil ataques confirmados em 2019. Neste ano pandêmico, a coisa piorou. No dia 3 de novembro, o STJ sofreu o que qualificou de “o pior ataque cibernético já empreendido contra uma instituição pública brasileira, em termos de dimensão e complexidade”.

O sistema ficou 26 horas completamente fora do ar, paralisando os trabalhos do Tribunal, e 17 dias com atividade reduzida enquanto a PF investigava o crime e os sistemas eram restabelecidos.

No dia do 1º turno das eleições municipais, os eleitores reclamaram dificuldade de acessar o serviço que informava locais de votação.

Durante a apuração houve outras tentativas de ataques coordenados. O Tribunal Superior Eleitoral nega que eles sejam a causa do atraso na divulgação da totalização dos votos nos maiores colégios eleitorais em cerca de 3 horas. Posteriormente, informou que os ataques DDoS (os crackers mandam milhões de requisições para congestionar o sistema) prejudicaram o app e-Título.

O Brasil no mundo GaaP

O Brasil não está mal colocado no mundo em termos de plataformas. Nosso sistema eleitoral é bastante ágil e será totalmente digital quando todos os eleitores tiverem o e-Título. Também está em discussão um prontuário único para os pacientes no DataSUS.

De acordo com a Pesquisa sobre Governo Eletrônico 2020, publicada pela ONU, o país ocupa a 20ª posição entre 193 nações no Índice de Serviços Online (OSI).

O líder mundial é a Coreia do Sul, seguida por Estônia, Dinamarca e Finlândia. Nas Américas ficamos atrás apenas dos Estados Unidos. No índice geral estamos no 54º lugar, ainda que classificado no grupo dos índices mais altos (veja o mapa).

Segundo a ONU, o Brasil integra um grupo de países, que inclui Argentina, Colômbia e México, com níveis de serviços on-line superiores aos seus respectivos níveis de infraestrutura e de capital humano.

O governo brasileiro informa que 58% dos serviços listados no portal Gov.br são digitais, o que garante uma economia de R$ 2 bilhões e 149 milhões de horas poupadas nos escaninhos da burocracia. Mas vale lembrar que o Gov.br só leva em conta os serviços do governo federal.

Um relatório do Banco Mundial ressalta a importância de investimento contínuo em infraestrutura para as plataformas de governo, especialmente em períodos como a pandemia.

A agência de proteção social argentina conseguiu mobilizar rapidamente ajuda emergencial para 8 milhões de trabalhadores do setor informal. No Uruguai, o Plan Ceibal garantiu educação remota pública para crianças pelo tempo que as escolas ficaram fechadas.

Conclusão

Os governos como plataforma representam um novo paradigma e não um avanço incremental no sistema de governar. Por isso, é importante trazer ao debate e convencer todos os envolvidos, cidadãos, empresas, servidores e os políticos, para criarem um arcabouço jurídico compatível.

O conceito de GaaP vai muito além das repartições públicas. No nível municipal, ele será essencial para viabilizar as cidades inteligentes (algo que não vi ou li ninguém debatendo no Brasil; agradeço indicações de fontes críveis.). Na pesquisa da ONU foram selecionadas 100 cidades do mundo para avaliação, sendo São Paulo a única brasileira. A melhor colocada foi Madrid.

A tecnologia tem o potencial de reconstruir o tipo de cidadania imaginada pelos criadores da democracia moderna nos Estados Unidos.

Como diz o trecho de uma correspondência entre Thomas Jefferson e Joseph Cabell: “todo homem sente que ele tem participação nos assuntos de governo, não apenas no dia da eleição, um dia por ano, mas todos os dias”.

Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet

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