Coluna do João Piccioni

É hora de tirar a aura do ‘ativo supremo’

06 mar 2024, 10:26 - atualizado em 06 mar 2024, 10:27
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(Imagem: Pixabay/ Joshgmit)

Veneza, século XVI. Com o avanço das grandes navegações, aquela que já foi a cidade-estado mais próspera e rica do Ocidente começava a ver seu poder ser tolhido. A descoberta de rotas alternativas para o Oriente e a exploração das terras do Novo Mundo levaram a uma mudança importante no fluxo de capital na Europa. Seus cidadãos se viam em busca de algo que pudesse recuperar as glórias do passado diante da quebra dos seus bancos e a falência das famílias nobres.

Eis que no horizonte, surge uma figura misteriosa, dotada da capacidade de transformar minerais sem valor em ouro. O alquimista, conhecido pelo nome de Bragadino, trouxe para a cidade-estado a esperança de que os dias de riqueza voltassem a reluzir. Como todo bom trambiqueiro, Bragadino usufruiu durante anos das benesses promovidas pelo governo veneziano, prometendo em contrapartida a produção infindável de ouro.

Sua promessa ainda guardava requintes de crueldade. Ele dizia que a produtividade da substância que transformava os minerais em ouro aumentaria conforme o tempo de descanso, ou seja, quanto mais tempo fechada a quatro chaves, maior a sua capacidade de produção de ouro. 

O poder de Bragadino calcado na fantasia de uma imensa riqueza somente aumentava, até que os questionamentos dos senadores vênetos saíram do controle. Do dia para a noite, o alquimista decidiu “deixar” de prestar seus serviços à Veneza, sinalizando a falta de paciência dos seus governantes. Deixou a cidade e partiu para Munique, onde repetiu o mesmo feito, agora sob a égide do Duque de Baviera.

A euforia pode ser a pedra no sapato das teses de investimentos

O trecho acima foi inspirado no capítulo 32 do livro de Robert Greene, “48 Leis do Poder”. Nele, o autor procura associar o exercício do poder por meio da criação de uma aura fantasiosa. 

“Vender um sonho” talvez seja a melhor forma de alguém controlar ou manipular o comportamento de pessoas, ou quiçá, investidores.

Quantas vezes já nos deparamos com os preços de ativos que avançam subitamente e que nos fazem sonhar com a prosperidade imediata?

Por vezes, no trabalho de Gestão de Recursos, separar as ideias fantasiosas daquilo que realmente funciona é difícil. Especialmente quando a euforia ofusca a construção das teses de investimento. Nesse ambiente, o uso de respostas simplistas para justificar as posições ganha força e os processos decisórios perdem qualidade. 

Para se evitar isso, é preciso sempre recobrar a consciência. As mesmas perguntas precisam ser feitas e repetidas diversas vezes: será que há uma repetição do comportamento passado dos investidores? Até onde o movimento do ativo está calcado nos seus fundamentos? E do lado da macroeconomia ou da política monetária, será que haverá algum efeito de segunda ordem que precise ser levado em consideração?

As respostas para essas perguntas deveriam ser suficientes para retirar a aura do ativo supremo. Afinal, de contas ele não existe e, às vezes, isso é descoberto a duras penas. Tais quais os cidadãos de Veneza anuviados pela promessa de Bragadino, os investidores (ou gestores) que se veem dominados pelas amarras da hipótese dos retornos ilimitados tendem a fazer más escolhas na construção dos seus portfólios e acabam ficando somente com o pó em suas mãos.

A performance dos mercados em março e os ajustes nas carteiras

Os primeiros pregões de março ainda são incapazes de delinear a tendência dos mercados para o mês. De relance, o sentimento é de que o ímpeto comprador dos investidores parece ter arrefecido. Nada muito anormal, dado o forte movimento das Bolsas internacionais nos últimos meses.

Até o fechamento desta edição, o índice S&P 500 ainda se mantinha acima dos 5 mil pontos e a perda do mês era de apenas 0,2%. O Nasdaq sofria um pouco mais (-0,8%), devido às quedas mais intensas das ações da Apple (-5,8%), Alphabet (-4,1%) e Tesla (-10,45%). A percepção é de que as três perderam o “appeal” que justificava as presenças entre as magnificent seven.

 Apesar de as posições de Apple e Google estarem presentes no Tech Select, tecnicamente estamos vendidos, dada as alocações em opções de venda. Tal mecanismo acabou por proteger o portfólio e, até o fechamento de segunda-feira (4), o fundo ainda se valorizava 1,15% no mês. No ano, o retorno alcançado é de 15,7%.

Lá fora, os dados provenientes da economia americana ganharão os holofotes a partir da semana que vem. A preocupação dos investidores será a mesma de fevereiro e está relacionada aos preços da economia. A inflação mais resiliente tem segurado os juros em um patamar mais elevado e dificultado a vida de Jerome Powell e seu time.

E em Terras Brasilis?

Por aqui, a discussão é parecida. Roberto Campos Neto reafirmou a rota da queda da Selic: mais duas reduções de 50 pontos base e depois uma releitura do cenário. Do nosso ponto de vista, a redução continuará neste mesmo passo, especialmente se o ciclo de queda de juros nos EUA se iniciar.

Do lado da renda variável brasileira, não há grandes novidades. Os resultados trimestrais começaram a ser divulgados, mas ainda não foram suficientes para trazer ânimo para os investidores locais. Nessa semana, a Petrobras divulgará seus resultados e deve trazer um pouco mais de volatilidade para o mercado (clique aqui para acessar a análise dos números de PETR4 na próxima sexta, 8 de março). 

Por fim, vale mencionar a fortíssima arrancada do bitcoin, que superou brevemente suas máximas históricas ao tocar a casa dos US$ 69 mil. O fluxo constante de investidores institucionais para o criptoativo se mostrou clara nas últimas semanas. No outro espectro, também vale mencionar a forte alta recente do ouro, que alcançou a marca dos US$ 2.150 a libra-onça. A corrida para os ativos de reserva de valor só parece estar no começo e está alinhada com a nossa visão apresentada no Outlook 2024.

Forte abraço,

João Piccioni

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joao.piccioni@moneytimes.com.br
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